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A vida espiritual, um conversar incessante com o Senhor

Alfredo Sampaio Costa SJ

Muitas pessoas estranharão esse nosso título, pois “normalmente” a vida de oração é mais entendida como estar em silêncio diante de Deus do que comparada a uma animada “conversa”. Ora, a peculiaridade de nossa religião cristã é exatamente o fato que, diferentemente dos ídolos mudos e das divindades de conotações panteístas, o Deus cristão é um Deus que fala, é um Deus dialogante. Ele se revelou como o Deus da promessa (Gn 15), o Deus da Aliança (Gn 17, 1-16; Ex 19, 1-12; 24, 1-11), realidades que implicam, necessariamente, uma relação construída na fidelidade e no Amor. O seu Amor, de fato, manifestado desde sempre de inúmeros modos, convoca-nos a uma existência pessoal única, objeto do seu favor e chamados a responder a esse amor nos outros (1) .

Jesus Cristo é a plena manifestação dessa vontade de dialogar que Deus tem para conosco. Em Jesus e só Nele e com Ele torna-se possível o diálogo entre Deus e a pessoa humana. Em Cristo, Deus se abaixou (Cf. Fl 2) até o ponto de pronunciar uma palavra humana que ao mesmo tempo não deixa de ser Palavra divina, pelo fato que contém todo o seu mistério transcendente e ao mesmo tempo próximo.

Toda a vida espiritual pode ser entendida a partir do marco simbólico do “conversar”. Quando nos pomos a rezar, experimentamos o Mistério de Deus em uma linguagem afetiva e poética, expressiva da sua capacidade de se relacionar e de acolher nossa liberdade na comunhão entre duas identidades que se comunicam reciprocamente (2) .

Em chave inaciana, essa conversa se dará no duplo movimento do “buscar” e “encontrar” a vontade divina. Na nossa inquietação existencial, sempre buscamos a Deus. A procura sincera por Deus se faz na simplicidade do coração (Sb 1,1), na humildade e pobreza (Sf 2,3; Sl 22,27), com uma alma contrita e com um espírito humilhado (Dn 3,39ss). Então Deus, que é “bom para quem Nele confia, para quem O busca” (Lm 3,25), deixa-se encontrar (Jr 29,14; Sl 69,33).

Jesus Cristo, que revela os pensamentos íntimos dos corações (Lc 2,35) opera a divisão entre a verdadeira e a falsa busca de Deus. Buscar e achar Deus é buscar e achar Jesus (Fl 3,8.12), deixar-se alcançar na fé por Ele (Fl 3,12). A vontade de Deus coincide com o seu desígnio salvador (1 Tm 2,4), que se concretiza e se manifesta em cada acontecimento. Deveremos descobri-la, assumi-la internamente e realizá-la livremente. E isso só é possível com muita conversa!

Jesus nos revela que vive para o Pai (Mt 7,21; 11,25; 12,50; Lc 12,32) e que sua vida é cumprir a Sua Vontade ( Jo 4,34; 5,30; 6,38; 8,29; 10,17s; 15,10; Mc 14,36; Lc 22,42) (3) . Como autênticos discípulos e discípulas de Jesus, devemos discernir a vontade de Deus (4) , para realizá-la com a ajuda de Deus (5) . Todo o diálogo que acompanha o itinerário dos Exercícios Espirituais tem como finalidade última a descoberta da vontade divina, e é expressão do desejo de conformar a própria existência a Cristo.

CONDUZIR OS OUTROS AO DIÁLOGO COM DEUS

Foi por meio de conversações espirituais que Inácio ganhou os seus primeiros companheiros, segundo o testemunho de Polanco: “Todos os cinco (Fabro, Xavier, Laínez, Salmerón e Bobadilla), por meio de exercícios e de conversações tiveram grande proveito das coisas espirituais e se determinaram a deixar o mundo e a seguir o Instituto de Inácio” (6) .

Fabro nos conta que teve com Inácio uma “conversação exterior e depois interior” e como Inácio se tornou o seu mestre nas coisas espirituais e lhe deu “forma e modo para subir ao conhecimento da divina vontade” (7) . Fabro e Xavier serão depois, ao lado de Inácio, os melhores apóstolos da conversação espiritual. Escutemos alguns testemunhos:

De Francisco Xavier se diz que “foi um homem cheio de santos desejos e muito dado à oração… falou pouco, mas com grande persuasão e suas palavras penetravam nos corações dos seus ouvintes” (8) . E Nadal acrescenta: Francisco Xavier foi um grande conversador espiritual: o seu zelo ardente pelas almas e o seu dom de discernimento e de tratar com as pessoas o tornaram capaz de, com poucas palavras, atraía a si todas as pessoas que encontrava.

Pedro Fabro também atraiu a admiração pela sua grande capacidade de tratar com as pessoas. Simão Rodrigues escreveu que nunca encontrou uma pessoa como Fabro, assim tão capaz de levar as almas ao reino dos céus: “ele possuía um misterioso dom de ganhar a amizade das pessoas e gradualmente e pacientemente as levava a um amor fervente por Deus”.

Também o P. Gonçalves da Câmara se lembra de um encontro que teve com Fabro em 1544: “Quando eu estava em Madrid fiz minha confissão a ele e tivemos longas conversas. Ele me maravilhou desde o início: disse comigo mesmo que não seria possível encontrar um homem mais cheio de Deus do que ele no mundo inteiro”(9).

Para Nadal, Pedro Fabro foi um destes apóstolos que tinham um talento especial para esse ministério. Ele nunca encontrou ninguém que não tivesse sido totalmente mudado depois de uma conversação com ele. Inácio dizia dele que era capaz de tirar água de uma pedra.(10)
São Pedro Canísio escreve sobre Fabro, em uma carta a um amigo:
Cheguei a Magúncia, levado por ventos propícios, encontrando para minha sorte o homem que eu buscava (Ez 22,30), se é que se pode chamá-lo de “homem” e não “anjo do Senhor”. Jamais vi nem ouvi um teólogo mais sábio e profundo ou um homem de uma virtude tão radiante e manifesta. A sua maior aspiração é a de cooperar com Cristo na salvação das almas. Nunca senti dos seus lábios, nem da sua conversação ordinária ou das suas conversas íntimas, nada que não resultasse em honra de Deus e inspirasse a devoção; mas nem por isso a sua palavra resultava fastidiosa ou pesada a quem o escutava. […] No que diz respeito a mim, só sou capaz de ponderar o muito que os Exercícios Espirituais mudaram o meu espírito e os meus sentimentos, iluminaram a minha alma com novos raios da graça celestial e me revitalizaram até o ponto que me parece que a abundância dos dons divinos repercutisse inclusive sobre o meu corpo e eu me sentisse plenamente fortalecido e como que transformado por completo em um outro homem” (11) .

E nós, vivemos nossa vida espiritual como uma “conversa” franca e íntima com o Senhor?
Nas nossas conversas, aparece o foco de “levar as pessoas para Deus” naquilo que falamos?
Temos amigas ou amigos com quem podemos “conversar espiritualmente”?

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

1- Cf. Germán ARANA, El diálogo con Dios en los Ejercicios Espirituales, Manresa 68 (1996) 351.
2- Idem.
3- Cf. Darío LÓPEZ TEJADA, Los Ejercicios Espirituales de San Ignacio de Loyola. Comentario y textos afines. EDIBESA, Madrid 1998, 43-44.
4- Cf. Rom 12,2; Col 1,9s; Ef 1, 3-14; 5,17.
5- 1 Ts 4,3; 5,18; 1 Pd 2,15; 3,17; Fil 2,13.
6- Summ. Hisp. N. 53; FN I, 183.
7- Pedro FABRO, Memorial , n. 8.
8- G. SCHUHRAMMER, Francis Xavier. His Life, His Times. Vol. I.Rome 1973, 386.
9- Memorial [8], FN I, 531.
10- Thomas CLANCY, The Conversational Word of God. A Commentary on the Doctrine of Saint Ignatius of Loyola concerning Spiritual Conversation, with Four Early Jesuit Texts, Institute of Jesuit Sources, St. Louis 1978, 52.
11- O. BRAUNSBERGER, Beati Petri Canisii, Societatis Iesu, Epistolae et Acta. Herder, Friburgi Brigosviae 1896-1923, Vol. I, 76-77.

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