Geraldo De Mori
“Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento!” (Mt 22,37)
Em seu livro Do transe à vertigem, publicado em 2022 e dedicado a uma análise dos fatores que levaram ao surgimento da extrema direita que chegou ao poder no Brasil e então governava o país, Rodrigo Nunes analisa as “matrizes discursivas” que lhe deram origem, as “gramáticas” que garantiram a comunicação e compatibilidade entre essas matrizes, as condições afetivas ou estados de ânimo coletivos que permitiram que essas matrizes se conectassem, a infraestrutura organizacional da qual elas dependiam. Uma das questões que guiam a argumentação de seu livro é: como um discurso radical, que por anos foi marginal na história política do país, pôde ser compartilhado e defendido não só pelas “elites” tidas como “liberais”, mas também por amplos setores da população mais pobre, ela mesma a primeira a sofrer os efeitos do radicalismo da extrema direita?
As análises da obra de Rodrigo Nunes não só ajudam a entender a ascensão da extrema direita no Brasil, mas oferecem pistas para se pensar um fenômeno que tem ganhado importância no seio do catolicismo no país: o neotradicionalismo. Na Igreja católica o tradicionalismo é identificado com os grupos que não aceitaram o Concílio Vaticano II, dentre os quais, o de Marcel Lefebvre é o mais conhecido, reunidos na Fraternidade São Pio X. No Brasil, a oposição ao Vaticano II foi minoritária no imediato pós-concílio. Poucos bispos não acolheram a reforma litúrgica, o mais conhecido sendo Castro Mayer, de Campos (RJ). Em termos de grupos religiosos, a oposição principal foi do grupo criado por Plinio Correa de Oliveira, a Tradição, Família, Propriedade (TFP). A maioria dos fiéis da Igreja católica, então hegemônica no país, acolheu a reforma que de imediato mais impactou sua vida religiosa: a liturgia em língua vernácula. O Plano de Pastoral de Conjunto, aprovado pela CNBB na última sessão do Concílio, foi aos poucos modelando a organização pastoral da Igreja no país, dando-lhe o perfil que a marcou nas décadas seguintes, com as experiências inovadoras das Comunidades Eclesiais de Base, das pastorais comprometidas com a defesa dos direitos humanos, da reflexão teológica que daí surgiu: a teologia da libertação. Alguns movimentos eclesiais, como os Cursilhos de Cristandade e a Renovação Carismática Católica, que também marcaram com sua presença a vida das comunidades, acentuavam mais a dimensão espiritual. Uma oposição entre “progressistas” ou “libertadores” e “conservadores” ou “tradicionalistas”, embora este último termo não se referisse aos grupos contrários ao Vaticano II, marcou então o debate no seio das comunidades católicas, sem criar, porém, rupturas ou cismas.
A leitura de Rodrigo Nunes sobre a polarização política no Brasil mostra como o consenso expresso na Constituição de 1988, realizado pelas forças que representavam os diversos interesses políticos do país, identificados com grupos mais à direita, as elites, ou à esquerda, as camadas populares, foi interrompido pela ascensão de uma extrema direita que, em nome da luta anticorrupção, buscava redesenhar o mapa político da nação, levantando a suspeita sobre a política tradicional e ganhando para si o apoio da elite e de amplos setores das classes médias e populares, mesmo promovendo ações contra os interesses desta última. Além de uma presença orquestrada nas novas mídias, foi decisivo nesse processo, a exploração dos afetos, recolhidos no campo semântico e simbólico da religião (Deus), da vida social e política (nação) e da vida afetiva (família).
O que chamou a atenção na polarização orquestrada pela extrema direita no Brasil foi a incapacidade de diálogo então criada, que se manifestou no seio das famílias, nos diversos grupos sociais e no interior das Igrejas. O outro já era visto como inimigo e, portanto, alguém com quem não se podia entrar em diálogo ou que deveria ser “eliminado”. No interior da Igreja católica explorou-se, entre os grupos que aderiram aos discursos da extrema direita, a identificação de boa parte da tradição eclesial que veio do Concílio Vaticano II com o comunismo, sobretudo o magistério eclesial latino-americano de Medellín, Puebla, Aparecida e a opção preferencial pelos pobres, aprofundados pela teologia elaborada no continente, a teologia da libertação. Para isso, contribuíram influenciadores “católicos” ou programas em canais de televisão e de redes sociais de inspiração católica, que buscaram a adesão, pelos afetos, do “católico comum”.
A aparente “trégua” que se seguiu à polarização no campo social e político do país não parece se traduzir da mesma forma no interior da Igreja católica, embora não diretamente associada ao espectro político. De fato, uma verdadeira campanha ou processo, contra a tradição eclesial e teológica latino-americana continua sendo conduzida através de influenciadores, canais e programas de inspiração “católica”, impactando amplas camadas de fiéis, que passam simplesmente a identificar tudo o que diz respeito ao compromisso social com os pobres, com comunismo, transformando a teologia da libertação em heresia, condenada, na opinião da maioria, pelo magistério da Igreja. No relatório da escuta para a XVI Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, feito a partir das sínteses enviadas à CNBB pelas dioceses do Brasil, fala-se, a propósito desses influenciadores, canais e programas, de “magistério alternativo” ou “paralelo”. É impressionante, por exemplo, o impacto desse tipo de “magistério” sobre certos estratos do mundo juvenil, como também sobre pessoas de meia idade ou idosas, levando muitos fiéis ao abandono de suas comunidades de fé ou a romperem com o magistério ordinário.
A “disputa de narrativas” que se encontra na sociedade e na Igreja, ao invés de contribuir para que “se tornem conhecidos os que são comprovados”, como fala Paulo à comunidade de Corinto (1Cor 11,19), tem se transformado em “arma” de desinformação e de mais divisão, levando a verdadeiros cismas no interior do corpo eclesial. O Papa Francisco, ao convocar o sínodo ao redor do tema: “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão”, quer chamar a Igreja a ser de fato no mundo “fermento”, “sal” e “luz”, ou seja, a ser servidora do Reino, trabalhando para que ele advenha, com atitudes samaritanas de compaixão, cuidado, serviço. Para que a Igreja viva a sinodalidade, mais do que nunca os que dela fazem parte precisam reaprender o dom da escuta e da acolhida do outro, escuta e acolhida que ultrapassem a simples opinião ideológica, que, apesar de dar segurança afetiva ou identitária, é incapaz de abrir-se e acolher a diferença.
Ser católico é não só pertencer a uma Igreja que se encontra em toda a parte, abraçando a diversidade de culturas, raças e condições sociais e de gênero, mas ser capaz de aprender da diferença, deixando-se enriquecer e fecundar por ela. Nesse sentido, o verdadeiro espírito católico é aquele que é capaz de ultrapassar a opinião, muitas vezes identificada com o afeto, o gosto, a aparência, estabelecendo verdadeiro diálogo, que supõe uma “passagem” (diá) pela palavra (logos), ou seja, a interlocução com os que participam do encontro no qual a palavra circula, é tomada, escutada, contradita, acolhida. O que de “desordenado” pode haver nessa palavra é corrigido, reorientado, dando nascimento à aventura de compartilhar algo comum, muitas vezes já dito pela tradição, mas que precisa sempre de novo ser redescoberto pelos novos interlocutores.
Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE