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Amizade social: uma pauta evangélica

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Pe. Jaldemir Vitório, SJ

A Campanha da Fraternidade, a cada ano, no tempo da quaresma, chama a atenção dos católicos e das pessoas de boa-vontade para um tópico da vivência da fé batismal, como engajamento nas tramas da história, para transformá-la, em conformidade com o que rezamos no Pai-Nosso: “venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6,10). Se estamos convencidos de nossa condição de “sal da terra” e “luz do mundo” (Mt 5,13-16), nos disporemos a abraçar, com coragem, a desafiadora aventura de fazer nosso mundo corresponder aos desígnios de Deus.

O tema do momento confronta-nos com a amizade social, enquanto tarefa a ser levada adiante, num contexto de inimizade generalizada, com seus desdobramentos perversos de morte, de intolerância e de indiferença, a colocarem em risco a sobrevivência da humanidade. De certo modo, estamos encurralados por um impasse: ou assumimos a amizade social como pauta das relações sociais, em todos os níveis, ou acabaremos por tornar realidade a definição de ser humano, cunhada pelo dramaturgo romano, Plauto, que viveu entre 254-184 a.C. Ele dizia que “o homem é o lobo do homem”. A metáfora sugestiva, tirada do mundo animal, carrega um forte simbolismo.

Deixando de lado a razão e usando a liberdade de maneira absurda, o ser humano torna-se capaz dos maiores desatinos, tanto nas relações interpessoais quanto nas relações com a Casa Comum. Movido pelo individualismo narcísico, o ser humano não tem escrúpulos de explorar o semelhante, mormente, os mais fracos e indefesos. Mas, também, mostra-se inescrupuloso no trato com o que pertence a todos e a todas – a res publica –, pela prática da corrupção, da sonegação de impostos, da apropriação indébita dos bens do Estado. O círculo de amizade social desse ser humano é bem restrito; engloba apenas seus familiares e um grupelho de comparsas, em detrimento de largas faixas da população, recaindo sobre os mais pobres o peso da injustiça que cometem.

O impasse não pode ser levado adiante, sem prazo para ser resolvido. Tomar uma decisão torna-se, cada vez mais, urgente. Não pode ser adiada, indefinidamente, com o risco de vermos a humanidade se desintegrar. E voltarmos ao tempo da barbárie, aos estágios pré-civilizacionais de nossa condição humana.

A chamada síndrome de Caim contamina a mente e o coração de largas faixas dos habitantes do nosso planeta. A história bíblica do fratricida das origens é bem conhecida (Gn 4,1-16). Após ter, barbaramente, tirado a vida do irmão, quando Deus lhe pergunta: “onde está o teu irmão Abel?”, tem a desfaçatez de responder: “não sei. Por acaso, sou guarda do meu irmão?” Realmente, ao dar largas ao ódio e ao desejo de vingança e romper os vínculos de fraternidade, como um psicopata, conduziu o irmão a um campo, onde lhe tirou a vida. Deus, porém, chama-o à realidade: “ouço o sangue do teu irmão, do chão da terra, a clamar por mim! Agora, tu és maldito!” Não pode ser digno de bênçãos quem age como Caim e, de forma desapiedada, de tantas formas, ceifa a vida alheia.

A voz do Papa Francisco tem se levantado, qual novo João Batista, a clamar no deserto, denunciando a falta de fraternidade, outro nome da amizade social, bem como, a globalização da indiferença, e a apontar o que Deus espera, não apenas dos cristãos e das pessoas de fé, antes, de todo e qualquer ser humano, dignos desse nome. Sim, os seres desumanos, jamais, abraçarão a causa de Francisco, antes a desacreditarão, a começar por lideranças de peso de nossa Igreja.

O capítulo sétimo da Encíclica Fratelli Tutti (n. 225-270) enumera uma série de tópicos, denominados “caminhos de um novo encontro”. Entretanto, se consideramos a amizade social uma pauta evangélica, cairemos na conta de que assumi-la, de coração aberto, torna-se uma questão de fé. Toda a existência de Jesus de Nazaré consistiu em viver a amizade social como estilo de vida. Aliás, isso foi motivo de escândalo e, quiçá, esteve na origem da decisão de matá-lo (Mt 12,14). A cena na casa do neo-discípulo Mateus parecia inadmissível para seus inimigos. “Aconteceu que estando Jesus à mesa, vieram muitos publicanos e pecadores e se assentaram à mesa com ele e seus discípulos” (Mt 9,10). Seus amigos eram os descartados pela sociedade e pela religião. A “massa sobrante” da intolerância sociorreligiosa! Outra cena evangélica fala dos “publicanos e pecadores aproximando-se de Jesus para ouvi-lo”, motivo pelo qual os fariseus e os escribas murmuravam: “esse homem recebe os pecadores e come com eles” (Lc 15,1-2). O Mestre ensina que, na eventualidade de darmos uma festa, devemos “chamar pobres, estropiados, coxos e cegos” (Lc 14,13). Com isso, queremos dizer que a amizade social, de cunho evangélico, nos passos de Jesus de Nazaré, começa com os deserdados do nosso mundo, e não com quem pode nos retribuir, nos elogiar ou, de algum modo, massagear o nosso ego.

Tal será o ponto de partida da amizade social, digna do nome cristão. Daí deverá se irradiar, em todas as direções, inclusive, na direção dos agentes de opressão e de injustiça, daqueles que devem ser questionados e denunciados, de quem deve ser acordado da letargia da maldade, de quem perdeu todo o senso de humanidade e se tornou incapaz de colocar limites à atrocidade de suas ações. Ninguém, a priori, pode ser riscado da preocupação cristã de fazê-los se converter, pela força da amizade social, expressa como testemunho de diálogo, de capacidade de acreditar no perdão e na força da reconciliação, de esforço de quebrar a espiral da violência e implantar a espiral da misericórdia.

Talvez, muitos cristãos e cristãs julgarão fora de propósito acreditar que a amizade social, um dia, possa ser a marca das relações entre pessoas e povos do nosso mundo. A parábola do grãozinho de mostarda pode nos ajudar a compreender o papel que nos cabe, na dinâmica do Reino de Deus, na atual quadra da história. O grãozinho a ser semeado chama-se, hoje, amizade social. O terreno corresponde a cada experiência de relação interpessoal, onde se tem a chance de tornar realidade o ideal evangélico de fraternidade. Na medida em que a semeadura for se multiplicando e os frutos forem se fazendo perceptíveis, será possível vermos despontar o mundo querido por Deus, onde todos, sem exceção, “sejamos irmãos e irmãs”, como aponta o lema da Campanha da Fraternidade, citando Mt 23,8. Quem puser em dúvida esse projeto de vida rompeu com Jesus e com o Evangelho. Quem tomar consciência dele, e, entretanto, não mover uma palha para implementá-lo, tornou-se sal que perdeu o sabor e “não serve mais para nada, senão para ser lançado fora e pisado pelos transeuntes” (Mt 5,13). Quem abraçou a causa da amizade social e, por não ter fôlego, abandonou-a, assemelha-se à semente caída em terreno pedregoso ou entre espinhos, que morre por não ter raízes profundas (Mt 13,5-7). Afinal, quem, apesar dos pesares, acredita que a amizade social corresponde ao querer de Deus para nossos dias, será capaz de torná-la uma bandeira e, movido pelo Espírito, dará frutos “cem, sessenta ou trinta” por um (Mt 13,8). Ou, como na parábola da sementinha de mostarda, tudo fará para que a amizade social “cresça e se torne uma árvore, a tal ponto que as aves do céu venham fazer ninhos em seus ramos” (Mt 13,32).

Vale a pena verificar nosso comportamento de batizados, em face da responsabilidade que temos em mãos. Estamos, deveras, convencidos de que a amizade social é uma pauta evangélica? Se não, é tempo de rever a seriedade de nosso compromisso batismal, em outras palavras, nosso compromisso com Deus e com a humanidade.

Jaldemir Vitório, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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