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Aparecida, 15 anos: discípulos missionários em saída

“Ide, pois; de todas as nações fazei discípulos” (Mt 28,19)

Geraldo De Mori SJ

A Igreja celebra, no dia 13 de maio de 2022, os 15 anos do início da V Conferência do Episcopado Latino-Americano e Caribenho, realizada em Aparecida. Considerada por muitos como uma nova retomada do espírito que havia movido o conjunto da Igreja na região depois do concílio Vaticano II, Aparecida contou, em sua abertura, com a presença de Bento XVI, que, no Discurso Inaugural ofereceu uma das leituras mais importantes da opção pelos pobres, afirmada nas conferências anteriores, mas objeto de muitas disputas ideológicas no seio dos grupos eclesiais. Segundo o então pontífice, “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza (2Cor 8,9)”. Esta afirmação, de grande profundidade, aponta para o coração mesmo do que foi a inspiração da Igreja dos pobres querida por João XXIII e fortemente impulsionada em Medellín (1978) e Puebla (1979) na América Latina e no Caribe depois do Concílio. O tema da V Conferência: “Discípulos e missionários de Jesus Cristo para que nossos povos Nele tenham vida “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 16,4), inspirou e norteou todos os debates e o Documento final, no qual jogou um papel importante o então cardeal Jorge Mario Bergoglio, eleito Papa em 13/032013.

Por que comemorar os 15 anos desse evento? Que significado ele tem para o conjunto da Igreja latino-americana e caribenha depois de já passados quinze anos? Todos são unânimes, inclusive o próprio Papa, em associar muitos dos temas centrais de seu pontificado ao que foi discutido e elaborado na V Conferência do CELAM. De fato, a expressão “Igreja em saída”, que caracteriza o ministério apostólico de Francisco, tem sua fonte no núcleo “discípulos missionários” que é um dos fios condutores de Aparecida. Algo parecido se pode dizer da insistência do Papa na reforma da Igreja que a faça sair da “pastoral da conservação” e a lance definitivamente numa pastoral profundamente missionária, que mude todos os ritmos e modos de fazer, levando-a às “periferias geográficas e existenciais” do tempo presente, como insiste, de modo tão contundente, a Exortação Evangelii gaudium e tantos gestos e iniciativas de Francisco. Mas, para além dessa assunção do magistério dos bispos latino-americanos e caribenhos em Aparecida pela Igreja universal, na figura e magistério do atual Pontífice, talvez a melhor maneira de pensar uma “comemoração” dos 15 anos dessa V Conferência seja, como insistiu o próprio Papa, quando representantes do CELAM foram pedir-lhe para realizar uma VI Conferência, revisitar as principais intuições de Aparecida, pois elas ainda não foram suficientemente assumidas pela Igreja do continente e nem do Brasil.

De fato, a “reforma” que faça balançar os modos consagrados de realizar a pastoral, presente em Aparecida com o apelo a sair da pastoral de conservação e entrar numa pastoral constitutivamente missionária, ainda não aconteceu. Para muitos, esse apelo se traduziria em envio missionário para lugares e situações que necessitam do “anúncio” da Boa Nova. No entanto, o próprio Papa Francisco aponta noutra direção. A fórmula criada por ele, da “Igreja em saída”, e o horizonte para o qual essa saída aponta, “as periferias geográficas e existenciais”, ainda não encontraram tradução efetiva na vida das comunidades eclesiais e em suas iniciativas pastorais. O “sempre se fez assim”, que é repetido de muitas maneiras nas comunidades eclesiais e mesmo em posturas oficiais da Igreja, é um indício de que o apelo de Aparecida, reverberado pelo atual Pontífice, ainda não é suficientemente escutado. Sair dos próprios hábitos e práticas supostamente consagrados é muito difícil. Muito mais ainda quando o apelo é para ir às “periferias”. No continente latino-americano e caribenho e no Brasil, periferia é sinal de perigo. Mesmo quem veio das periferias geográficas como, por exemplo, é o caso de grande parte dos ministros ordenados, que possuem a função de animar os distintos ministérios e serviços nas comunidades de fé, não se sente muitas vezes confortável em voltar a ela, por achar que “já está ocupada”, quer por grupos evangélicos, quer por “milícias” perigosas, quer por pessoas que não se interessam pela fé ou pela religião. Quanto às periferias existenciais, elas são mais confusas e ameaçadoras ainda, pois tocam situações limite, com as quais grande parte das pessoas não se sente confortável.

O mais interessante de Aparecida, que também é central no pontificado de Francisco, é que, além de mobilizar a Igreja para sua atual missão, saindo da autorreferencialidade, recriando-se como inteiramente missionária, em suas práticas pastorais e no modo de se situar frente ao mundo, visto desde a periferia, ela aponta o caminho que leva a essa perspectiva: o discipulado. De fato, o binômio “discípulo-missionário”, que resume a proposta da V Conferência, é um convite a redescobrir o que é ser cristão. Mais que uma herança, como dizia também Bento XVI em seu Discurso inaugural, a fé cristã é um encontro que muda a vida, que faz ver de outro modo o mundo, as pessoas. É ao redor do termo “discípulo” que esse encontro deve ser entendido. E ser discípulo, como aparece nos evangelhos, é seguir o mestre de Nazaré. E o mais estimulante e provocador é que grande parte do caminho do discipulado, no qual Jesus introduziu seus primeiros seguidores, aos quais enviou como missionários, ainda em vida, mas também depois de sua morte-ressurreição, se deu na Galileia. E o que era a Galileia senão a periferia da periferia? Com efeito, quando sabe que Jesus vinha dessa região, Natanael pergunta a Felipe: “pode vir algo bom de lá?” (Jo 14,6). Portanto, o próprio tornar-se cristão, que é o caminho do discipulado, implica um deixar-se afetar pela periferia, pois, como diz Paulo aos Coríntios, “aquele que não conhecia o pecado Deus o tornou pecado para nossa justificação” (2Cor 5,21). Deus escolheu a periferia, mais ainda, aquilo que é tido como abjeto no mundo, como o nascer numa estribaria, o crescer em humanidade na “Galileia das nações (Mt 4,15), o morrer a morte dos malditos (Gl 3,13). O caminho do discipulado é o que se converte ao modo de ser de Jesus e somente tendo de fato entrado nele, se poderá descobrir que é na periferia e para a periferia que o evangelho do reino é boa notícia. O verdadeiro discípulo se torna missionário descobrindo na periferia o jeito de ser de Deus, que não rejeita nada que é próprio da humanidade, mesmo o que parece se opor a ela, transfigurando-a em Cristo.

Celebrar 15 anos de Aparecida é então mais uma vez escutar o que disse o jovem à entrada do túmulo, quando, segundo Marcos, as mulheres foram ungir o corpo de Jesus: ‘Ele vos precede na Galileia; lá o vereis, como vos disse” (Mc 16,7). Enquanto a Igreja e os cristãos não se convencerem que é na periferia que devem encontrar-se com Jesus, a Igreja não sairá da “pastoral de manutenção”, tornando-se incapaz de perceber que o novo mundo no qual ela deve introduzir os que creem no Evangelho, é o mundo que transfigura a periferia, trazendo-lhe vida nova, a vida do Ressuscitado, que “faz novas todas as coisas”. E o Espírito já precede o agir da Igreja, porque move os corações, como se percebe em tantos gestos de cuidado e solidariedade que se encontram nas periferias como sinais antecipadores do caminho novo e vivo para o qual todos são chamados, em vista de tornar o “reino de Deus presente no meio de nós (Lc 17,20-25).

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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