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Artefato natural

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Marília Murta de Almeida

Adélia Prado é conhecida por tocar a fronteira da teologia em sua poesia, ao tecer versos em que podemos perceber ideias sobre Deus em meio às experiências expostas. Algumas vezes, o poema é todo ele uma ideia, como o pequeno “Artefato nipônico”, que, por seu título e tamanho, faz alusão à arte japonesa dos haikai. Diz assim:

A borboleta pousada

ou é Deus

ou é nada.

Três versos de imensa simplicidade que causam impacto imediato. A beleza poética é translúcida. Três versos que poderiam ser repetidos como uma cantiga antiga que cantamos sem pensar em seu sentido. Mas me vi fisgada pela vontade de entender mais. Não o que a própria Adélia quis dizer, porque isso certamente não vou alcançar, dada a infinita abertura de sentido que o poema parece conter. Eu gostaria apenas de conseguir construir um sentido e a possibilidade de responder algo a uma criança que me perguntasse: por que a borboleta pousada ou é Deus ou é nada?

Não é simples encontrar a resposta. Me vi tomada de um silêncio que parecia dizer: é só isso mesmo, não há desdobramento possível. Até que vi uma borboleta pousada em meu sofá. Eu estava deitada e tive meu olhar desviado da TV para uma manchinha branca no encosto do sofá. Era uma mini borboleta. Muito pequena, de asas transparentes e com um tom branco mais forte no contorno das asas e no corpo minúsculo. Menorzinha do que todas as borboletas que eu já tinha visto antes.

Fiquei por um tempo ali perdida, olhando aquela coisa tão pequena e insignificante e ao mesmo tempo capaz de prender minha atenção. De tanto olhar, me emocionei. Era bonito demais que aquela coisinha fosse viva e capaz de voar. Era intenso demais que eu pudesse percebê-la e ficar tocada pela sua existência. Era a maravilha do mundo. Era Deus. E então me lembrei dos versos e repeti: a borboleta pousada ou é Deus ou é nada.

Experimentei na carne o que já tinha tentado entender. A pequenez daquela borboletinha tinha intensificado em mim a sensibilidade, como se tivesse potencializado minha possibilidade de decifrar o enigma de Adélia.

Tão pequena, era quase nada. Era mesmo nada, se eu a não tivesse notado e me deixado fisgar por sua presença. Nada é o que passa diante de nossos sentidos sem que notemos. Nada é o que, mesmo que percebamos, não nos chama a atenção, não nos prende. Nada é tudo aquilo que não contemplamos. Ou seja, ser nada não é algo que esteja localizado lá na coisa que é nada. Quando algo é nada, isso quer dizer que não foi contemplado, que a atenção humana não se demorou diante dessa coisa. Como nada poderia ter sido aquela borboletinha branca em meu sofá.

Quando a vi e me deixei levar, caí em estado contemplativo. Vi Deus ali.

A existência da borboleta pousada é simples como um traço numa página em branco. Não nos distrai com seu voo rápido. Apenas fica ali. É como um retrato sem enfeites da Criação. Deus se mostra no que criou. E o que criou tem a absoluta simplicidade da imóvel borboleta.

Poderia ser qualquer outra coisa, claro. Mas Adélia encontra a imagem que parece ser a mais apropriada para expor a sua ideia. A beleza da borboleta é eficaz em nos fisgar a atenção. É como um artefato da natureza capaz de pescar a atenção humana. Seu pouso, quando demorado, é capaz de nos prender também demoradamente. A borboleta pousada é capaz de desacelerar o tempo e colocar a atenção humana num estado também desacelerado.

Não nos distrai com o voo e nem com nenhuma outra coisa. Talvez um biólogo se distraia tentando classificá-la, ou um artista plástico planejando recriá-la. Mas se o pouso perdurar, é grande a chance de que todas as distrações desapareçam e que possamos ficar lá, só nós e a borboleta pousada. Só a atenção e o serzinho insignificante.

A intensificação dessa experiência nos encaminha para a encruzilhada em que devemos responder: o que é essa coisa que eu vejo? Rememorando agora a experiência que tive, percebo que, se algo exterior me chamasse, uma voz, a lembrança de uma tarefa, a campainha, eu poderia ter me levantado rápido e minha resposta seria: o que vi não era nada, só uma borboletinha. Mas eu fiquei e, ficando, senti o imenso absurdo de que aquela vidinha existisse. E foi esse sentimento que me levou ao maravilhamento.

A borboletinha branca funcionou para mim quase como um ponto matemático, que não tem dimensões, mas que é a referência primeira para que localizemos qualquer coisa. Em sua quase não existência, me despertou para o espanto diante de toda a existência. Espanto que, se é a fonte do filosofar, pode ser também a brecha do mundo por onde vemos Deus.

Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora nos departamentos de Filosofia e Teologia da FAJE

Foto: Ivan Marjavonic – Shutterstock

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