Elton Vitoriano Ribeiro, SJ
A importância da dimensão econômica na vida social, especialmente nas sociedades contemporâneas, é cada vez mais patente. O problema da produção de riqueza e sua distribuição, a economia de mercado, a justiça distributiva e a globalização, formam partes fundamentais das estruturas das sociedades capitalistas contemporâneas. Nesse contexto, o capitalismo, seja como ordem social institucionalizada, seja como forma de vida, torna-se o ponto fulcral de análise, e por vezes crítica, da filosofia social.
Entre as várias escolas da filosofia social contemporânea, a Teoria Crítica ganha cada vez mais adeptos. Seus estudos atentos às sociedades em seus desenvolvimentos históricos, ganham muita força ao combinar vários instrumentos de análise social com o pensamento de grandes autores da filosofia como Hegel, Marx, Arendt, Foucault, Gramsci, Habermas e outros. Destaque seja dado às duas autoras do livro Capitalismo em debate: Uma conversa na Teoria Crítica (São Paulo: Boitempo, 2020), Nancy Fraser e Rahel Jaeggi. Ambas estão produzindo reflexões consistentes na área da Teoria Crítica, especialmente na análise do capitalismo e no desenvolvimento de uma Filosofia Feminista. Esse livro é um excelente exemplo. No livro elas fazem uma reflexão sobre o capitalismo atual a partir de quatro eixos: (1) Conceitualizando o capitalismo, (2) Historicizando o capitalismo, (3) Criticando o capitalismo e (4) Contestando o capitalismo.
As autoras propõem o que elas chamam de uma concepção expandida do capitalismo que proporciona um quadro mais abrangente para analisar a sociedade atual. Elas desenvolvem um método que busca interpretar o capitalismo a partir de uma unidade de análise e crítica buscando construir um quadro que “dirige nossa atenção para as divisões institucionais que estruturam essa sociedade – para as mudanças pelas quais estão passando agora e para os projetos de vários atores que buscam desafiar ou defender essas divisões”.
Na primeira parte, Conceitualizando o capitalismo, as autoras se perguntam: o que é o capitalismo? Para elas, o capitalismo contemporâneo deve ser interpretado no plural, dada a variedade de formas que encontramos em muitos lugares. Mas, basicamente, três dimensões sempre se repetem nessas formas: a social, a política e a econômica. Nessas formas analisadas fica claro que o capitalismo é intrinsecamente histórico, ou seja, suas propriedades e características emergem com o tempo, diante das dificuldades enfrentadas pelas sociedades capitalistas. Numa leitura mais ortodoxa, as características centrais do capitalismo se dividem em três âmbitos: (1) a propriedade privada dos meios de produção e a divisão de classe entre proprietários e produtores; (2) a instituição de um mercado de trabalho livre e (3) a dinâmica de acumulação de capital.
A segunda parte do livro entra na discussão acerca do capitalismo no tempo em Historicizando o capitalismo. Para as autoras, o capitalismo é uma ordem social institucionalizada histórica. No capitalismo tudo se altera historicamente. A ordem capitalista se desenvolve de maneira temporal e numa sequência de regimes historicamente específicos de acumulação onde “a lógica econômica do capitalismo está enraizada num quadro maior que inclui as condições de fundo não econômicas do poder público, da reprodução social e da natureza”.
Na terceira parte, Criticando o capitalismo, as autoras se perguntam: “após conceituar e historicizar o capitalismo, como exatamente devemos criticá-lo?”. O cuidado aqui é não fazer do capitalismo o fundamento de todo mal social ou querer retroceder a um modo de vida pré-capitalista. Para evitar esses riscos as estratégias de crítica devem seguir em três direções: uma crítica funcionalista a partir das crises, uma crítica moral a partir da injustiça e uma crítica ética a partir do empobrecido. Essas abordagens são importantes porque, na argumentação desenvolvida pelas autoras, o capitalismo é intrinsecamente disfuncional e propenso a crises, o capitalismo é problemático porque produz uma estrutura social desigual e injusta, e o capitalismo trunca a democracia ao restringir a agenda política a questões econômicas e de mercado. Na opinião delas, uma reflexão crítica deverá preocupar-se com as desigualdades distributivas, os mecanismos estruturais e os arranjos sociais que geram as desigualdades.
No texto é muito instrutivo acompanhar a argumentação das autoras sobre a instabilidade do capitalismo. Para elas, essa instabilidade não é algo acidental, mas é algo inscrito na própria estrutura do capitalismo. Aqui a discussão é ampliada a partir das críticas de outros autores: Daniel Bell, com a crítica da contradição entre economia e cultura; Jurgen Habermas, com a crítica da contraposição entre economia e política – sistema e mundo da vida; Michel Polanyi, com a crítica acerca das relações entre economia e sociedade; James O’Connor, a partir do ecomarxismo, com a crítica da dinâmica da produção capitalista e suas condições naturais necessárias; Lise Vogel, a partir da Teoria Feminista, com a crítica sobre a relação entre a produção de mercadorias e a reprodução social. As autoras buscam integrar as críticas anteriores interpretando o capitalismo como uma ordem social institucionalizada a partir dos pares produção/reprodução, sociedade/natureza e economia/política.
Finalmente, na última parte do livro intitulada Contestando o capitalismo, as autoras discutem os vários movimentos, transformações e lutas sociais contestatórias do capitalismo. A ideia geral é criar uma visão expandida das lutas sociais na sociedade capitalista, suas características e seus papéis na transformação do capitalismo. Por exemplo, movimentos pelo decrescimento, pós-coloniais, decoloniais e indígenas são longamente discutidos. A crise do capitalismo financeiro é analisada como sendo devedora de muitos movimentos como a emergência de um novo capitalismo cognitivo, mas também, como a valorização dos movimentos ecológicos, democráticos, pela reprodução social e pela organização do trabalho remunerado e da proteção social. Assim, na última discussão as autoras sugerem seguir em frente porque “apenas ao combinar uma política de distribuição igualitária robusta com uma política de reconhecimento substancialmente inclusiva e sensível à classe é que podemos construir um bloco contra hegemônico a nos levar, para além da atual crise, a um mundo melhor”.
Portanto, o livro em questão, escrito por importantes autoras contemporâneas, é profundamente esclarecedor e muito instrutivo. É um texto que ajuda a compreender melhor as dinâmicas sociais do capitalismo, e por assim dizer, da nossa própria vida social contemporânea. Mas, infelizmente, o livro nos deixa com a impressão, que já se tornou lugar comum em nossa sociedade (Mark Fischer, Capitalist Realism: Is there no alternative?, 2009), de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. [Para ler a resenha completa: http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/30768].
Elton Vitoriano Ribeiro é professor e pesquisador no departamento de Filosofia e reitor da FAJE