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Como rezar em um mundo fragmentado?

Alfredo Sampaio Costa SJ

Neste mês, propomos uma série de reflexões iluminados pelo jesuíta poeta Benjamín González Buelta sobre como rezar em um mundo fragmentado. São textos que dão o que pensar, o que fazer e, principalmente, o que rezar! É uma ocasião para revermos como vivemos nosso encontro com o Senhor e pedirmos sua graça para crescermos na intimidade com Ele!

A OUSADIA DE RETOMAR A VIDA TODA EM FORMA DE CONVERSA FRANCA

Santo Inácio nos ensina que a dinâmica da nossa oração nos leva a um diálogo amoroso e íntimo com o Senhor. Ele utiliza uma palavra própria do seu tempo para isso, que hoje traduziríamos por “conversa”: o “colóquio”. Sabemos o que seja um estilo “coloquial”. O que revela é uma cumplicidade, um falar de coração a coração, sem formalismos ou estilos rebuscados. Supõe uma intimidade amorosa e o reconhecimento de uma Presença especial a quem nos dirigimos. Escreve González Buelta:
“Deus é o nosso “centro”, o mais profundo de nossa intimidade. “Nele vivemos, movemo-nos e existimos” (At 17,28). Está em comunhão conosco, e toda a nossa pessoa em suas dimensões mais profundas fica afetada por esse encontro sempre aberto a um futuro de plenitude, para muito mais além do que podemos perceber ou expressar” .(1)

Refletindo sobre nossa experiência de oração, queremos conversar um pouco sobre esse “deixar-nos afetar” por este encontro com o Senhor. Como se dá isso? “A pessoa toda” é afetada! Dou-me conta disso? Ou reduzo imensamente a minha oração a uma insípida “mensagem para a minha vida”, que na verdade em nada modifica meu agir ou pensar?

Como verificar se na oração feita se deu autenticamente um “encontro” com Alguém? Quais seriam as “credenciais” deste encontro “sempre aberto”? Estou disposto(a) a viver os meus encontros (diários?) com o Senhor nesta perspectiva de serem sempre “incompletos”, “inacabados”, sempre possíveis de serem vivenciados de forma ainda mais intensa?

A oração como uma conversação amigável com o Senhor: Quando se dá um genuíno encontro, brota espontaneamente um diálogo sincero! Explica González Buelta: “Este surgimento de Deus em nós não é uma invasão, mas sim uma conversação entre duas liberdades” .(2)

Não é uma invasão”: Deus certamente toma a iniciativa, provoca, insinua-se… mas sempre respeitando nossa liberdade. Não adianta forçar uma vida de oração! Será infrutífera! Somente quando reconhecemos a Deus como Livre e a nós mesmos como interlocutores livres se torna possível iniciar uma conversa prazerosa.
Em um primeiro momento de nossa existência, começamos esse diálogo com Deus. Sair de suas mãos não foi uma despedida, mas sim o começo de um encontro que já não tem um ponto final. E esse encontro é único. Deus nos respeita absolutamente como somos, pois é o único que nos conhece e nos ama como somos. Entrará dentro de nós à medida que vamos abrindo as últimas dimensões de nossa existência, os dias novos, as etapas de mudança, as situações surpreendentes, as rotinas inevitáveis e os rituais aprendidos” .(3)

Como se deu o nosso primeiro encontro com Deus na oração? Como teve início a nossa história de amizade com Ele? Como Ele foi se aproximando de mim, até tomar a iniciativa de me dirigir a Palavra…? E depois desse primeiro encontro, como foram se dando mais e mais encontros, como fomos nos deixando cativar por essa nova Presença que foi tomando conta da nossa vida…?
É muito importante, sem pressa alguma, nos dedicarmos a essa memória orante do nosso amor primeiro, saboreando novamente cada momento, cada palavra, gesto, emoção… Afinal, não é disso que se nutre nossa existência?

Certamente não é possível um sobrevoo tal que, como se fosse um drone, faria com que eu vislumbrasse, num só momento, toda uma história tecida por inúmeros encontros. Todo amor tem sua história e se desenvolve no tempo:
“Na vida de oração, procuramos crescer nesse encontro com Deus. Relacionamo-nos com ele como nos relacionamos com as outras pessoas e realidades que nos rodeiam, pois Deus se deu uma vida humana em Jesus e por isso podemos dele nos aproximar por meio de nossos sentidos” .(4)

Desde muito cedo, na tradição cristã, percebeu-se a importância de rezar com nossos sentidos. Dos sentidos corporais aos espirituais, num aprofundamento cheio de afeto, num desejo crescente de poder tocar, agarrar, reter de algum modo aquilo que se está experimentando no momento sublime do encontro com o Senhor na oração. O uso coordenado e repleto de amor dos nossos sentidos faz-nos descobrir e experimentar nuances novos, matizes diversos das expressões amorosas que circulam entre o Criador e sua criatura.

“Podemos nos aproximar”: E essa possibilidade acende em nós o desejo de comunhão, faz-nos sentir chamados, acolhidos, interpelados: “Vinde e vede!”. “E permaneceram com ele!”, narra João no início do seu evangelho.

Para iniciar uma conversa com o Senhor, é preciso inicialmente tomar consciência da sua Presença, da sua Pessoa. O melhor modo de fazer isso é recordar o mistério da Encarnação, onde Deus se tornou acessível aos meus sentidos humanos. Não nos cansaremos nunca de desfilar a imensa importância da Encarnação para a nossa oração. Não foi por acaso que grandes místicos como Francisco de Assis, Santa Teresa de Ávila enamoraram-se pela humanidade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Em Jesus, Verbo Encarnado, podemos finalmente ver, ouvir, tocar quem é Deus (“Filipe, quem me vê, vê o Pai!” Jo 14,9).

Jesus, palavra insuperável e inesgotável, de homem e de Deus
“Para nós, Jesus é a Verdade definitiva e inesgotável que nos revela, ao mesmo tempo, o mistério de Deus e o mistério do que significa ser perfeitamente humano, sem que haja nenhuma contradição entre essas duas afirmações. Jesus é a palavra inesgotável de Deus. Quando mais nos aprofundamos nela, mais horizontes se nos abrem. Quando nos aproximamos de Jesus em situações pessoais, sociais ou culturais novas, descobrimos dimensões surpreendentemente novas” .(5)

A oração, no seu duplo movimento integrado, é autoconhecimento e ao mesmo tempo descoberta do Deus Criador. Em Jesus, descobrimos que ser humano e ser divino não concorrem entre si, mas se implicam um ao outro. Verbo encarnado e Luz do mundo, ao nos aproximarmos Dele em oração, descobrimos contornos novos em rincões inexplorados de nossa existência. José Martín Velasco, profundo conhecedor dos mistérios da mística, intui no mais profundo de todo ser humano essa busca sedenta de Deus, que vai transformando, moldando, ordenando todo o nosso ser. Tal é a experiência que vivenciamos, ainda de modo fragmentário e confuso, quando dobramos os joelhos em oração:
“A partir dessas novas situações que seremos sempre surpreendidos pela boa notícia que Deus nos dá a todos em Jesus: “Precisamos desenvolver pois, desde esse amor à verdade que se indaga… uma compreensão da relação com a verdade que privilegie a busca sobre a posse, o desejo e a nostalgia sobre o domínio, a contemplação sempre aberta a seu objeto e deixando-se iluminar por ele, sobre sua captura” (J. MARTÍN VELASCO, Ser cristão em uma cultura pós-moderna, ed. PPC, Madrid 1997, 89).

1- Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado. Loyola SP2007, 61.
2- Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 61.
3- Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 61.
4- Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 62.
5- Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 77.

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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