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Conversar de coração a coração

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Alfredo Sampaio Costa SJ

Quando vamos rezar, como em qualquer outro encontro interpessoal, não é simples nos lançarmos de imediato a profundas partilhas e trocas de afeto. Muitas vezes é preciso pacientemente aguardar o momento, realizar passos preliminares, ir-nos aproximando um ao outro progressivamente. Mas chegará a ocasião onde o afeto não cabe mais dentro do peito e explodirá. É a hora de deixar o coração falar, livremente, amorosamente. Chegamos ao que Inácio chama de “colóquio”.

O colóquio como diálogo com o Senhor na oração é para Inácio o momento de falar “de coração a coração”, isto é, apaixonadamente, com intenso afeto. Para que nossa oração seja verdadeiramente autêntico diálogo com o Senhor, há uma experiência de base que precisamos recuperar: a de sermos amados por Deus!

Sentir-se amado: Não vivemos sem essa experiência, ou viveremos uma vida muito triste. É interessante notar como, em momentos-chave da sua vida, vemos brotar nos Evangelhos a revelação que Jesus é amado pelo Pai. Pois esse Amor imenso é que moveu o Senhor a se lançar a anunciar a Boa-Nova e a enfrentar a Paixão, morrendo por nós na Cruz. Pois é exatamente nestes dois momentos decisivos (Batismo = início da missão pública e Transfiguração = subida para Jerusalém = preparação para a Paixão) que ecoará, forte e claro, a voz do Pai: “Este é meu Filho muito amado!”. Se olhamos para a nossa história de vida, encontraremos certamente situações similares onde, em meio a incertezas, sofrimentos e ameaças, o sentimento repousante e seguro de sermos amados nos impediu de naufragarmos.

O que nos permitirá enfrentar o que nos espera no futuro (situações de dor, incompreensão, renúncias que temos que fazer, etc.) é necessário antes de mais nada compreender, sentir, experimentar que Aquele que está nos falando é alguém que nos Ama de um modo antes inimaginável. Sem essa experiência de sentirmo-nos amados por Ele, suas palavras e atitudes não terão nenhum efeito transformador sobre minha vida concreta. Lembremos sempre da palavra do evangelho na Transfiguração: “Esse é meu Filho muito amado: escutai-O!” (Mc 9,7)

Uma oração que penetra até o coração, no centro da pessoa e produz movimentos afetivos intensos. Explana González Buelta sobre o tema:

A realidade que entra em nós através dos impactos dos sentidos processados por nosso pensamento é levada até a afetividade. Se é percebida como boa, produz em nós sentimentos de agrado e de acolhida. Se é percebida como desagradável ou ameaçadora, sentimo-nos feridos e nos fechamos. A afetividade tem muitos matizes diferentes que conformam um universo apaixonante mas complexo, no centro mesmo de nossa pessoa. A realidade pode produzir em nós os sentimentos que são estados afetivos suaves e de curta duração, as emoções intensas e breves, e as paixões que são intensas e se instalam dentro de nós por longo tempo. Os estados de ânimo são duráveis e suaves. Nem todos os impactos afetivos passam antes por nosso pensamento. Às vezes são tão intensos que se chocam diretamente e com força em nossa afetividade” (1) .

Ao tocar nesse tema dos afetos, sinto necessidade de avisar que precisamos estar atentos a uma coisa: que não sejamos engolidos por nossos afetos! E o que era um encontro amoroso com o Senhor da minha vida se perca em expressões de sentimentalismos superficiais e desconectados, sem incidência na minha vida e prática pastoral. González Buelta, fiel à tradição inaciana, coloca-nos diante de um universo binário “agradável/desagradável”, “consolação/desolação”, “a favor/contra Deus”. Grande parte das nossas energias na oração serão consumidas nesse sentir, identificar, classificar e reagir ao que experimentamos na oração. Sem medo de olhar o que está se passando no nosso interior e os seus diversos graus de intensidade: sentimentos (estados afetivos suaves e de curta duração), emoções (intensas e breves) e as temidas paixões (intensas e que se instalam para ficar). Acima destas, também falamos em “estados de ânimo”, duráveis e suaves.

Quando rezo de forma livre, aberta, o meu universo interior desdobra-se e desvela-se diante de mim e de Deus. Pois é ali onde se dá o encontro escondido e secreto com o Amor de nossas vidas. Quando nos detemos na oração a conversar com o Senhor, nos voltaremos para os sentimentos que despontam no mais íntimo de nós, para saboreá-los, deixá-los fruir dentro de nós, e observaremos para onde eles nos conduzem.

A afetividade tem um peso decisivo na vida: Ainda que nos consideremos muito racionais e equilibrados, sabemos que as grandes decisões de nossa vida não as tomamos com base em silogismos ou intrincados raciocínios, mas movidos pelo ímpeto das paixões. Comenta González Buelta a respeito:

Pondus meum, amor meus” (Santo Agostinho, Confissões XIII, 9,10). O que eu amo, isso é o peso que inclina meu coração. “O afetivo é o efetivo”, o que sentimos profundamente acaba por inclinar nossa pessoa nessa direção. Por isso é fundamental fazer-nos conscientes do que acontece no nosso coração. “Poderosas razões tem o coração que a razão não conhece”. Às vezes uma pessoa toma uma decisão surpreendente para todos, até para ela mesma. Mas não é mais que o momento de deixar sair à luz um processo que caminhou durante muito tempo na escuridão ignorada do coração. A maturidade emocional supõe o dar-se conta dos próprios sentimentos e dos pensamentos que esses sentimentos geram. Dar-se conta dos sentimentos, dar-lhes nome e dialogar com eles é decisivo no crescimento humano e espiritual” (2) .

Devido à nossa formação, cultura, temperamento, temos receio de liberar toda a afetividade que trazemos dentro de nós na oração, como se isso fosse algo inconveniente ou até mesmo “pecaminoso”. Nada mais alheio à experiência espiritual dos grandes santos da Igreja, que usavam até mesmo expressões carregadas de sentido erótico para expressar o amor que sentiam por Jesus, inspirando-se no Cântico dos Cânticos e sua simbólica nupcial.

Na oração amorosa, experimentamos a diferença entre fazer algo por fazer (por obrigação) e fazer por amor. Abissal diferença, sentida nos seus efeitos em nós e nas pessoas que amamos!

Sempre na origem: amar e sentir-se amado por Alguém: sentir-se amado por um ser pessoal, com o qual nos podemos relacionar, é decisivo para ser pessoas. Não nos basta dizer que Deus é a Força, a Natureza e tantas outras expressões vagas de uma transcendência diluída e impessoal. Devemos viver conscientemente a relação que cada um estabelece com Deus, estando bem atentos ao que vai acontecendo dentro de nós, sem relegar às sombras a dimensão afetiva desta relação.

Hoje vemos se multiplicar métodos de oração e meditação onde a dimensão pessoal de encontro com Alguém desaparece. Quando rezamos, rezamos a Alguém? Na presença de Alguém? Estabelecemos um diálogo ou trata-se, no máximo, de um solilóquio? Nosso Deus é Comunidade de Amor, Deus-Trindade. Esse fato faz alguma diferença para minha oração pessoal? Estamos diante de um ponto fundamental, pois como vou me sentir amado(a) se não há quem me Ame?

No nosso diálogo com o Senhor, fazemos a experiência de muitas forças, pulsões e atrações que entram em ação quando queremos nos abrir aos demais, vencer nossos temores e inseguranças que se mostram quando nos expomos ao amor do outro. Quanto maior for a dimensão da decisão a ser tomada, mais forte experimentaremos resistências para colocar em prática o que se nos revela como sendo Vontade de Deus. É importante que, quando essas tensões vierem à tona na nossa oração, que tenhamos coragem e abertura para conversar sobre elas com o Senhor e com nosso guia espiritual. Por vezes tais mecanismos atuam de modo inconsciente, submersos, tornando-se de difícil detecção. Nestas horas, requer-se algo bem difícil: tranquilidade e paciência. Não devemos nos apavorar nem nos deixarmos paralisar por esses medos. Eles fazem parte da nossa vida, são expressões de nossa limitada condição humana.

Com o passar dos anos, fui aprendendo algo importante: que, na maior parte das ocasiões, será preciso procurar avançar sem seguranças e com visibilidade bem moderada. Em outras palavras: na fé! Talvez duvidemos de nossas próprias energias, o horizonte permanece insistentemente nebuloso, mas não posso deixar de sentir que há uma Presença que caminha comigo e não me permite desistir ou vacilar.

Se há algo que só tem valor quando se experimenta concretamente, é o Amor! Não adianta nada discursar sobre o amor, procurar argumentos para convencer alguém a respeito dele. Nada substitui a experiência concreta, viva, atual, de sermos amados. O mesmo vale quando queremos retribuir ao amor recebido. Ao falar de responder ao amor, de retribuir tanto amor recebido, é preciso, contudo, fazer uma observação de peso: o amor verdadeiro é gratuito!

A eficácia do amor não pode ignorar a dimensão afetiva nem destruir as dimensões de gratuidade que existem em todo amor verdadeiro, que de maneira nenhuma pode reduzir-se à contabilidade como se se tratasse de um investimento bem calculado. O amor presta atenção a cada pessoa concreta e ao momento presente, mas situa os instantes pontuais de comunhão ou de ajuda na história de uma relação. Cada pessoa não é amada como uma fruta que eu capturei em minha mão, isolada de tudo para o meu próprio benefício, mas sim situada em uma rede de relações que a constituem como pessoa. Por isso todo amor está aberto a outros, à comunidade e ao povo em seu conjunto. O amor verdadeiro é sempre concreto e universal, tem nomes próprios, mas nunca constrói uma cerca ao redor deles”(3).

Benjamin Buelta nesse parágrafo que acabamos de ler toca pontos preciosos para nossa consideração. O primeiro deles que gostaria de comentar brevemente é o da eficácia do amor. A palavra “eficácia” pareceria não cair nada bem ao se falar do amor, do amor gratuito. Pois, à primeira vista, falar de eficácia implicaria planejar estratégias de ação, buscar elementos que garantam o “sucesso” da empresa do amor. Como medir a “eficácia” do amor? Numericamente? Por extensão? Tarefa complicada! Aos olhos do mundo, o Amor de Jesus não foi nada “eficaz”. Talvez entenderíamos o que o autor significa por “eficaz” com termos tais como “concreto”, “encarnado” ou mesmo “real”. Aqui não “falamos” de amor ou de amar; trata-se de “amar de verdade!”.

O segundo ponto que me chamou a atenção é que se trata de um “amor aberto a outros”, que nem por isso abandona seu ser concreto, mas, simplesmente, recusa-se a se fechar em si mesmo. “Tem nomes próprios, mas nunca constrói uma cerca ao redor deles”: gratuidade, altruísmo são essenciais nesse amor-serviço! Na nossa oração, contemplando e nos confrontando com o Homem Livre por excelência, Jesus de Nazaré, teremos ocasião de ponderar honestamente a qualidade do nosso amor pelos demais.

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

1- Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 87.
2- Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 87-88.
3- Benjamín GONZÁLEZ BUELTA, Orar em um mundo fragmentado, 91-92

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