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Da arte de ler à arte de navegar

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Silvia Contaldo

Voltemos ao século XII, à Escola de São Vitor, situada à margem esquerda do Rio Sena, em Paris. Em setembro de 1127, Hugo de São Vitor (1096-1141) abriria as atividades escolares com uma novidade: um guia de estudos, obra sua, sem igual, um livro sobre a arte de ler, por meio de metodologia aplicada e de orientações práticas sobre “o que ler, como ler, por que ler” (HUGO DE SÃO VITOR, 2001, p. 13).*

Naquela cerimônia, Mestre Hugo leu para os estudantes a primeira frase do Livro I do seu Didascalicon de Studio Legendi: “De todas as coisas a serem procuradas, a primeira é a Sapiência, na qual reside a forma do bem perfeito” (Ibid., p. 10), anunciando a finalidade dos estudos filosóficos e teológicos e, ao mesmo tempo, provocando interrogações que certamente deveriam passar pela cabeça daqueles jovens.

A sua proposta de leitura – e de estudos – como se vê, é um processo ascensional, para o alto, do mais simples ao mais complexo, que visa à formação do sujeito à procura do bem maior, a Sapiência. E, para essa formação, deve-se primeiro aprender a aprender a ler.

Ao contrário dos estudantes medievais, temos hoje acesso irrestrito às fontes de pesquisa, postas horizontalmente, num fluxo vertiginoso. A obra inovadora do mestre Hugo tinha como escopo curricular – tão moderno em tempos medievais – propor aos estudantes metodologias de leitura, com os meios físicos que dispunham, para que se tornassem bons estudantes, dispostos a aprimorar sua formação intelectual.

Não se trata de contrapor uma cultura a outra, um tempo a outro tempo, ou mesmo de lamentar o que ficou no passado. O que se quer é salientar, enfatizar, que o processo ensino-aprendizagem, nos âmbitos escolares, não pode prescindir do ato de ler. Ler o texto para ler o mundo, ler o mundo para ler o texto, numa combinação de conhecimento e autoconhecimento, tal como expresso no projeto educativo socrático do “conhece-te a ti mesmo” e assumido por Hugo de São Vítor, no longínquo século XII. Por várias razões, no contexto atual, boas práticas de leitura têm passado ao largo das vias digitais.

À primeira vista esta ênfase poderia demonstrar certa ingenuidade, pois, afinal, ao universo escolar já estaria circunscrito o ato de ler. Seria como se lembrássemos aos médicos que eles precisam aprender a manusear o estetoscópio. Ocorre que o ato de ler não é um exercício mecânico assim como o ato de navegar pelas redes digitais não garante a formação do sujeito. E, por isso, o mestre Hugo reiterava que “o estudante prudente ouve todos com prazer, lê tudo, não despreza escrito algum, pessoa alguma [..] nem leva em conta quanto sabe, mas quanto ignora” (Ibid., p. 157), para aprender a separar o joio do trigo, a não dar crédito a qualquer versão ou interpretação, a não perder o crivo da razão. No século XII, uma expressão como mendax nuntius não teria o alcance da moderna fakenews.

Assim, apresentar aos alunos “um quadro geral de estudos e das disciplinas […] e um roteiro sobre o que ler e como ler” (Ibid., p. 14), com o firme propósito de colocar-se à procura da Sapiência e aprender a “não procurar fora de nós aquilo que podemos encontrar dentro de nós” (Ibid., p. 51) era, para Hugo de São Vitor, firme compromisso com o processo educativo.

É fascinante depararmo-nos, na Idade Média, com uma exortação à leitura, muito mais do que um mero passo-a-passo para os estudos. Nada mais estranho aos mestres medievais do que um manual do tipo “sete passos para fazer seu Comentário às sentenças de Pedro Lombardo”. Para o mestre Hugo, a leitura “ocupa o primeiro lugar na instrução” (Ibid., 45). Prescindir da leitura é renunciar a aventuras incríveis, só realizadas pelo sujeito que lê. O resto é cópia da cópia da cópia, já sem vida que nada acrescenta ao sujeito em formação.

Além disso, não seria demais afirmar que o Didascalicon poderia ser um guia ético para os estudantes. Nada tem a ver com prescrições sobre bom comportamento, mas com os propósitos de enlaces entre os estudos e a vida, entre aquilo que se aprende e aquilo que se pratica, enfim, sobre o bem viver. A título de exemplo, vejam-se as três recomendações procedimentais que estão postas no Livro III acerca da humildade como condição da disciplina moral: “primeiro, não reputar de pouco valor nenhuma ciência e nenhum escrito; segundo, não ter vergonha de aprender de qualquer um; terceiro, não desprezar os outros depois de ter alcançado o saber” (Ibid., p.155).

Nesse mesmo capítulo, Mestre Hugo não poupa os estudantes: “Por que, então, você se envergonha de aprender e não se envergonha de ser ignorante? Esta vergonha é maior que aquela. E ainda, por que você aspira a coisas altíssimas, quando ainda jaz no lugar mais baixo? Avalie, antes, aquilo que as tuas forças podem sustentar. Avança bem quem avança ordenadamente. Alguns, querendo dar um grande salto, caem no precipício. Não queira, portanto, apressar-se demais” (Ibid., p. 157).

Bom leitor é bom aprendiz, não importando se ele esteja na Escola de São Vítor do século XII ou num campus universitário do século XXI que, aliás, anda às voltas com outras modalidades de leituras e com nova gramática cujos autores são os algoritmos.

Mestre Hugo confere ainda importância ao arquivo da memória, depósito dos registros dos nossos estudos. Faça resumos, aconselha o Mestre: “Resumo significa reduzir aquilo do qual foi falado ou escrito prolixamente para uma compilação breve e compendiosa que os antigos chamavam epílogo, isto é, uma breve recapitulação das coisas ditas antes” (Ibid., p.153). O interessante, nessa definição, é que não se trata de defender um tipo de memória recitativa, desconectada do que foi apreendido, mas de considerá-la como fonte para a qual devemos de vez em quando retornar. Lá estão os saberes, prontos a nos devolver o seu sabor. Guardadas as proporções, o leitor pode voltar à essa fonte preciosa ao passo que o navegador da era digital corre o risco de se perder nos vários riachos: “Há uma fonte e muito riachos: por que você segue as tortuosidades do rio? Fique com a fonte, e tem tudo” (Ibid. p. 153).

Nos nossos tempos, o leitor navegador pode ler muitas coisas, tem acesso facilitado – por um clique ou por um comando de voz, a qualquer livro, documento, imagem etc. mas não necessariamente entende tudo o que lê, ouve ou vê.  Lá no século XII, Mestre Hugo dizia: “Aconselho a você, estudante, a não alegrar-se excessivamente por ler muitas coisas, mas por entender muitas coisas e não somente entender para poder memorizar. Do contrário, não adianta ler muito nem entender muito” (Ibid., p. 153).

Leitor e navegador, cada um no seu tempo. O perigo que se nos impõe é que o leitor-navegador não tenha lido suficientemente as instruções sobre função e uso da bússola e, o que é pior, que tenham sido deletados. Esperemos que não. E continuemos a praticar a arte de ler a fim de livrarmo-nos, o quanto possível, da forma mais perversa da ignorância que tem deixado à deriva um sem-fim de navegantes: “Não saber e não querer saber são de longe duas coisas bem diversas. Não saber é questão de incapacidade, mas detestar o saber é perversidade do saber” (Ibid., p. 43).

Silvia Contaldo é professora no departamento de Filosofia da FAJE

*HUGO DE SÃO VITOR. Didascalicon. A arte de ler. Petrópolis: Vozes, 2001.

Foto: Shutterstock

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