Geraldo De Mori, SJ
“Maldito seja Canaã! Que seja o escravo dos escravos de seus irmãos” (Gn 9,25).
Desde 2011, o 20 de novembro foi instituído como Dia Nacional da Consciência Negra, recordando a morte de Zumbi dos Palmares, líder negro de um dos principais quilombos criados no Nordeste do país, onde hoje é o estado de Alagoas, e que foi morto em 20 de novembro de 1695. Eventos de todos os tipos são promovidos nessa data, alguns deles de caráter histórico-educativo, outros com ênfase na dimensão cultural, e outros, enfim, com um foco em manifestações de protesto, numa perspectiva política.
Um dos argumentos que serviu de justificação teológica à escravidão negra no Brasil colonial e nas décadas que se seguiram à independência do país até o ano da abolição da escravatura, em 1888, é o que associa a raça negra aos descendentes de Cam (pai de Canaã), um dos filhos de Noé amaldiçoado pelo pai por ter visto sua nudez e ter ido contar aos irmãos, o que, na concepção do narrador da história que se segue ao dilúvio, era uma falta grave. Os africanos, sobretudo os negros, foram identificados com esses descendentes, o que legitimava que pudessem ser reduzidos ao estado servil. Em muitas pregações e mesmo em textos com pretensão teológica, esse argumento foi invocado, conferindo sustentação teológica aos que traficavam e exploravam o trabalho dos negros. Mas a “maldição” de Cam não terminou com a abolição da escravatura, como atestam as condições às quais tiveram que se adaptar os negros e seus descendentes após a Lei Áurea. Um bom número, sem ter para onde ir, preferiu ficar nas propriedades ou nos empreendimentos dos antigos senhores, recebendo as migalhas que lhes davam pelo trabalho realizado. Outros se aventuraram nas possibilidades que lhes abriam a nova condição, instalando-se nas periferias das cidades ou em terras devolutas, nas quais buscavam tirar o sustento de cada dia. O modo como foram tratados foi muito diferente do adotado com os muitos migrantes que o país começou então a acolher, em parte utilizados para “embranquecer” a república que, a partir de 1899, se tornou o país. Apesar de constitutivos da identidade nacional, pelos muitos aportes que ofereceram na formação da sociedade e da cultura brasileiras, a “maldição de Cam” parecia não os abandonar, como indicam os dados de sua situação.
Celebrar o Dia Nacional da Consciência Negra, ao contrário do que pensam muitos brasileiros, não é alimentar no país revanchismo, nem muito menos racismo. Ao contrário, o que esta data quer ser para o país é, por um lado, lembrar que, mais que “maldição”, os negros que compõem a identidade nacional são “bênção”, ou seja, eles não só ajudaram a construir a economia, a sociedade e a cultura brasileiras, mas seu “gênio”, em terras brasílicas, ganhou um perfil próprio, alimentado do chão, do suor, das lágrimas, das lutas, das conquistas, dos fracassos e impasses que compõem a brasilidade. Somente por isso, precisam ser reconhecidos e acolhidos como “bênção”. O que seus ancestrais trouxeram da África tornou-se em terras Tupiniquins algo novo, permeado, sem dúvida, do gingado, da resiliência, da sabedoria, da criatividade, do brilho de suas origens, mas mesclados com os matizes das cores, dos sabores, das intuições e sensibilidades que se forjaram na nova nação que ajudaram a construir. Mas além de reconhecer o que os afrodescendentes aportaram como “bênção” ao país, o Dia 20 de Novembro, é, por outro lado, um dia de “luto e luta”, ou seja, ele é um “grito” de revolta contra o que ainda o Brasil não dá a uma parcela enorme dos que o constroem sem poder se beneficiar dos “frutos” de seu suor, trabalho, sofrimento, dor e esperança. Sim, um “clamor” brota das gargantas de tantos homens e mulheres que continuam sofrendo cada dia todas as “estações” de uma “via-sacra” que parece interminável, esperando que, enfim, justiça seja feita frente ao mal que parece se perpetuar sem fim.
“Maldição” e “bênção”, eis duas imagens ou metáforas que ajudam a pensar o Dia Nacional da Consciência Negra. Elas se fecundam uma à outra e podem também iluminar o que povo brasileiro é chamado a celebrar no Dia 20 de novembro. A ideologia de que no país não existe racismo é continuamente desmentida pelas enormes atrocidades que são cometidas cada dia contra negros, mulatos e pardos nesse “país tropical, abençoado por Deus”. Prova disso, como mostram os índices das populações prisionais, é que elas são quase que 80% constituídas por afrodescendentes, em geral jovens. O mesmo para as populações que vivem em favelas, cortiços, invasões e aglomerados, ou para o irrisório número de negros, mulatos e pardos que acedem às universidades ou que participam das riquezas que continuamente continuam a produzir para o “progresso da nação”. Só se pode sair dos efeitos perversos dessa “maldição” que atinge, sobretudo, os afrodescendentes, quando, de fato, a “dívida” que o país tem para com eles começar a se tornar “políticas” de reconhecimento, cuja fonte é descobrir que eles são “bênção”. Bênção na constituição do que é mais profundo na sociedade e na cultura do país, sua capacidade de resiliência, de festa, de “esperar contra toda a esperança”, de revoltar-se contra o que diminui e avilta a condição humana. Bênção de um “gingado” que sabe produzir o mais do menos, que é capaz de aprender na dor e na luta, de uma “esperteza” que é feita das muitas diferenças do que pode amalgamá-la.
A que é chamada a reflexão teológica diante do Dia Nacional da Consciência Negra? Primeiro à humildade. Infelizmente, uma leitura equivocada de Gn 9,25 serviu de respaldo ideológico e teológico a uma das piores atrocidades que o humano perpetrou a outro humano. Como muitos Papas já o fizeram, é necessário reconhecer que no sistema escravagista houve um “atentado” ao humano presente no povo negro. Não para exacerbar um sentimento de culpa, mas para criar uma consciência de “dívida”. “Dívida” com relação ao reconhecimento do aporte do trabalho escravo na construção da riqueza nacional e à sua contribuição na formação da sociedade e da cultura do país. “Dívida” a ser pouco a pouco “paga” para que os descendentes de escravos possam progressivamente receber o que é “bênção” para a maior parte do povo.
Alguns passos foram dados nas últimas décadas, como a “política de cotas”, o reconhecimento do direito às terras “quilombolas”, a valorização de tantas expressões artísticas e culturais de matrizes afrodescendentes. Todas essas iniciativas já abrem caminhos ao estabelecimento de uma “justiça” a ser feita para com os negros que foram transplantados forçadamente nas terras Tupiniquins. Os quase 400 anos de escravidão e os vestígios profundos que deixaram no inconsciente coletivo nacional não são, porém, eliminados numa geração. Muitos anos serão necessários ainda para que a “maldição” que foi a escravidão para o Brasil possa pouco a pouco transformar-se em “bênção”. Não a bênção que canoniza e justificou o mal, feito ao longo de todo esse período. Mas a bênção que consegue acolher nesses brasileiros e brasileiras o que lhes é mais próprio e que se dá em partilha para que todos sejam beneficiados, enriquecidos. Oxalá esses dias que se seguem ao 20 de novembro em 2022 despertem mentes e corações para revisitar essas páginas tristes de uma história que parece “sem fim”, mas que pode tornar-se páginas de um caminho que humaniza, pois, enfim, se fez “bênção”.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE