Das possibilidades de ensinar em tempos obscuros: O Livro das Cintilações de Defensor de Ligugé

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Silvia Contaldo

Pouco se sabe sobre Defensor de Ligugé que viveu entre os séculos VI e VII. Sua obra, o Liber Scintillarum, no entanto, foi muito lida e apreciada ao longo da Escolástica. Jean Lauand – no livro: Cultura e Educação na Idade Média (1998, p. 123) – nos informa que “todas as bibliotecas da época possuíam seu exemplar e que mais de 350 manuscritos chegaram até nós”. Não deixa de nos surpreender que essa obra tenha feito tanto sucesso, pois trata-se de uma coleção de sentenças – ou cintilações – escrita por esse monge do longínquo mosteiro de São Martinho de Ligugé, situado nos arredores de Poitiers. Foi lá que ocorreu o julgamento de Joana D’Arc em maio de 1431. A jovem combatente da chamada Guerra dos Cem Anos tinha apenas 19 anos! Muitos séculos antes, travavam-se ali outras guerras e de outros matizes.

Quanto à luta do monge, esta se dará no campo pedagógico e da formação das pessoas que, apesar das adversidades socioculturais, buscavam alguma orientação espiritual para seguir suas vidas à luz dos preceitos cristãos. Talvez tenha sido essa a grande contribuição desse autor pouco famoso: a de empenhar-se num projeto educativo destinado a qualquer um interessado em aprender, e assim, de certo modo, uma fagulha ou cintilação num mundo de obscuridades: “Leitor, quem quer que tu sejas, que lês este pequeno livro, eu, que o escrevi, rogo-te que o leias com alma e acolhas com gratidão estas saborosas sentenças” (Ibid., p.131).

De centelha em centelha

Defensor nos conta em seu Prólogo que seu mestre, de nome Ursino, o havia encarregado de selecionar sentenças ou cintilações de modo a despertar no leitor algum tipo de reflexão sobre a vida, inspirada nos ensinamentos cristãos. Para empreender tal obra, Defensor debruçou-se sobre inumeráveis textos bíblicos e textos herdados da Patrística. “Desejoso de obedecer [ao mestre Ursino], perscrutei páginas e páginas e, ao deparar uma sentença fulgurante, colhi-a com a diligência de quem encontra uma pérola ou uma gema. Tal como uma fonte, que se faz de muitas gotas, assim reuni testemunhos de diversos volumes para tentar compor esse opúsculo” (Ibid., p.132). Vê-se, portanto, que o trabalho não foi fácil e que, para tal fim, esse aprendiz obediente precisou de valer-se do conjunto de obras de épocas anteriores, cujo acesso era bem difícil – sem conexões virtuais, sem ferramentas de tradução simultânea….

A obra, dirigida a qualquer leitor, trazia uma proposta prático-educativa inovadora. Nas sociedades atuais é comum depararmo-nos com obras que nos oferecem saberes compactados em pílulas. Em tempos de leituras aligeiradas, muitos pensam ser suficiente pequenas doses de autoajuda, com breves e cômodas receitas para se obter uma vida de sucesso. Nesse caso, Defensor de Ligugé foi originalíssimo e deve ter contribuído para “pregadores em busca de argumentos para seus sermões, para mestres espirituais em busca de inspiração para a direção de almas, para pessoas desejosas de encontrar orientação para o crescimento no cultivo da ascética cristã” (ibid., p.125) e, felizmente, também para nós, leitores do século XXI – muitas vezes desavisados quanto ao valor empenhado num engenhoso trabalho de organizar textos traduzidos para que o outro – seja ele quem for – tenha acesso à cultura e à educação.

O Liber Scintillarum é um conjunto de 2494 sentenças ou cintilações, recolhidas do vasto repertório dos textos sagrados e da literatura patrística. Essas sentenças foram divididas em 81 capítulos, que se referem, por sua vez, à diversidade das paixões e atitudes humanas: a ira, a avareza, a tolice, a embriaguez, a mentira, o riso e o pranto etc. Não há um rigor numérico entre sentenças e capítulos. Importa que os capítulos tocam profundamente as vicissitudes da vida. Suas respectivas sentenças frequentemente se interrelacionam e até mesmo se repetem.

Para além da estrutura da obra e sua divisão vale ressaltar que a obra ultrapassa a simples compilação de sentenças. Sabendo das numerosas dificuldades de transmitir saberes e valores inscritos na tradição filosófica-teológica-cristã – recorde-se que se trata de uma obra escrita por volta do ano 700, sem, portanto, aparatos e luminosidades tecnológicas -, Defensor cuidou de alocar as sentenças de modo inusitado, criativo, fazendo talvez o papel do professor educador. Ao invés de entregar um pacote pronto, deixa que o aluno faça o embrulho, isto é, que perscrute numa sentença técnica seu significado vivencial. Intenção pedagógica, metodologia socrática, crença nas possibilidades humanas de seguir aprendendo? Talvez. O fato é que a obra, em sua estrutura simples sem ser simplória, certifica o lugar de destaque que devemos dar àqueles que, em tempos de fragilidades intelectuais, conseguem produzir e partilhar cintilações.

Das possibilidades de ensinar em tempos obscuros

Como se sabe, no início da chamada Idade Média, a situação sociocultural não era promissora. Tempos obscuros e, por parte dos novos ocupantes do que fora o Império Romano, pouca atenção ao patrimônio cultural, certo desprezo pelo passado e nenhum projeto pedagógico no sentido de uma paideia. Naquele contexto de muitas adversidades – em todos os âmbitos da vida – aquele monge encontrou tempo e coragem para colher e recolher ensinamentos preciosos, válidos para qualquer um, fosse romano, germânico, grego, pois, ao fim e ao cabo, todos devemos e podemos aprender a viver com mais sabedoria e menos tolices, tais como preconceitos, egoísmos, individualismos etc.

Sob essa perspectiva, o Livro das Cintilações é valioso, pois atesta que mesmo em condições adversas e valendo-se de pequenas doses ou centelhas, um projeto educativo é possível. Afinal, já se disse, um incêndio começa pequeno – por fagulhas ou centelhas – e, em terreno fértil, pode clarear horizontes sombrios.

A fim de motivar os leitores a conhecerem a obra, eis alguns exemplos, aleatórios, das Cintilações:

 Sobre a Humildade (IV, 28): Disse Agostinho: Deus se fez humilde; que se envergonhe o homem de ser soberbo (Em Os 18, 15; PL 36,163).

Sobre a Sabedoria (XVIII, 98): Disse Isidoro: Simplicidade com ignorância chama-se tolice; simplicidade com prudência, sabedoria (Sent. I, 10; PL 83,600).

Sobre a brevidade da vida presente (LXXX, 261): Disse Isidoro: o tecido desfaz-se fio a fio; a vida do homem consome-se dia a dia (Sent., III,61,3; PL 83,736).

Sobre as Leituras (LXXXI,262): Disse o Senhor no Evangelho: Quem lê, entenda (Mt 24, 25).

 

[Esse texto foi apresentado no III Colóquio Intercongressos da Rede Latino-Americana de Filosofia Medieval, em maio de 2022, com maior número de exemplos extraídos do Livro das Cintilações].

 

Silvia Contaldo é professora no Departamento de Filosofia da FAJE

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