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De Aparecida (2007) a Guadalupe (2021): dois ícones inspiradores da vida e da ação pastoral da Igreja Católica na América Latina e no Caribe

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Geraldo De Mori SJ

“Vida, doçura, esperança nossa, salve! A vós bradamos…, A vós suspiramos” (Salve Rainha).

Entre os dias 21 e 28 de novembro, a Igreja católica latino-americana e caribenha viverá uma experiência inédita, a Assembleia Eclesial, que reunirá, em Guadalupe, México, cerca de 100 delegados/as e, no resto da América Latina e Caribe, mais de mil, em acesso remoto síncrono. O conjunto dos participantes é constituído por 20% de bispos, 20% de padres e diáconos, 20% de religiosos/as, e 40% de leigos/as. A proposta de realização de uma Assembleia Eclesial surgiu quando, ao ser consultado sobre a realização de uma VI Conferência do CELAM, o papa Francisco sugeriu que se fizesse algo novo, que reunisse não somente os bispos, mas também representantes de todos os segmentos que compõem o “povo santo de Deus”. Na mensagem que enviou para a Assembleia ele diz: “a Igreja se dá ao partir o pão, a Igreja se dá com todos, sem exclusão, e uma assembleia eclesial é sinal disso; de uma Igreja sem exclusão”. Dentre os objetivos, traçados por ele, está o de fazer memória de Aparecida, a V Conferência do CELAM, realizada em 2007, da qual, “ainda temos muito a aprender”. Um dos desafios de Aparecida, segundo o Papa, é fazer com que todos os fiéis se sintam parte da Igreja. A própria Assembleia não devia ser um encontro de uma elite, mas teria que implicar todo o povo santo de Deus. A escolha de Guadalupe se situa no horizonte da comemoração, no ano de 2031, dos 500 anos da aparição a Juan Diego, seguida, em 2033, dos 2 mil anos da morte de Jesus.

Dois ícones femininos emolduram, em parte, a Assembleia Eclesial: Aparecida, que remete à imagem negra de Nossa Senhora da Conceição, encontrada há mais de 300 anos no Vale do Paraíba, em São Paulo, proclamada Padroeira do Brasil; Guadalupe, que remete à efígie indígena de uma mulher grávida, identificada com a Mãe de Jesus, tornando-se padroeira do México e de toda a América Latina e Caribe. Simbolicamente as duas figuras dizem muito da identidade latino-americana e caribenha, como também do cristianismo que se formou no continente: uma identidade mestiça, que deve muito do que é aos negros e indígenas; um cristianismo mestiço, que bebeu nas fontes dos saberes africanos e ameríndios grande parte de seu vigor espiritual e sapiencial. Essas figuras sintetizam ainda algo do atual pontificado, que elegeu entre os símbolos que dizem o que é a Igreja e sua missão as figuras da “mãe” e do “hospital de campanha”. De fato, muito da fecundidade do cristianismo se deve ao fato de suas comunidades gerarem e educarem na fé tantos filhos e filhas, além de prestar-lhes os devidos cuidados quando se encontram feridos/as por tanta violência à qual são submetidos/as.

O processo de preparação da Assembleia Eclesial foi precedido de uma grande escuta, que envolveu todas as Igrejas locais. Isso se deu entre abril e agosto de 2021, através de uma plataforma especialmente criada para o preenchimento de um formulário. A participação podia ser pessoal ou em grupo, e envolveu também fóruns diversos. Segundo o texto que compila o conjunto do material coletado, denominado Síntese narrativa: A escuta na Primeira Assembleia Eclesial da América latina e Caribe, participaram cerca de 70 mil pessoas. Somente do Brasil, foram mais 10 mil participantes. Além desse texto, que condensa o conjunto das respostas às várias questões do formulário, foi elaborado ainda o Documento para o Discernimento Comunitário, ao redor do qual, em parte, se dará o evento. Segundo a Programação, também divulgada, além de momentos de oração, o evento contará com momentos de reflexão, discussão, com sínteses parciais do que será refletido nos grupos, num esforço de discernimento.

A Síntese Narrativa, que recolhe a escuta feita através do formulário em uma plataforma criada para esse fim, articula-se em quatro Blocos Temáticos, cada um subdividido em vários subtemas: I. Ver a Realidade, que tratou os seguintes temas: 1. Pandemia; 2. Modelo econômico excludente; 3. Cultura do descarte; 4. Solidariedade – Fraternidade; 5. Cuidado da casa comum; 6. Violência – Violências; 7. Direitos Humanos; 8. Educação; 9. Migrantes – Migrações; 10; Refugiados; 11. Tráfico de Pessoas; 12. Povos Afrodescendentes; 13. Globalização; 14. Comunicação; II. Iluminar – Discernir a Realidade, que abordou as seguintes questões: 1. Secularização; 2. Igrejas evangélicas; 3. Pastoral urbana; 4. Jovens – Juventude; 5. Mulheres; 6. Abusos sexuais; 7. Clericalismo; 8. Igreja sinodal; 9. Identidade; 10. Renovação eclesial; 12. Diálogo inter-religioso; 12. Seguimento de Jesus; 13. Discipulado missionário; 14. Igreja em saída; 15. Evangelização; 16. Promoção humana; 17. Libertação; III. Agir, que abordou os seguintes temas: 1. Ecologia integral; 2. Economia solidária; 3. Paz; 4. Novas tecnologias; 5. Democracia; IV. Outros temas prioritários, que abordou as seguintes questões: 1. Teologia (s); 2. Religiosidade popular; 3. Catequese; 4. Discernimento; 5. Eucaristia; 6. Vocação; 7. Laicato; 8. Diaconato; 9. Formação; 10 Conversão pastoral; 11. Diversidade sexual; 12. Necessidades especiais; 13. Conflitos ambientais; 14. Opção pelos pobres.

Por sua vez, o Documento para o discernimento, após uma Introdução, que associa o que acontece na América Latina e no Caribe a um kairós, no qual o Espírito age, subdivide-se em quatro partes: I. O horizonte e o propósito da Primeira Assembleia Eclesial; II. Uma Assembleia Eclesial no espírito de Aparecida, que retoma da V Conferência os seguintes temas: 1. Discípulos missionários de Jesus Cristo; 2. Discípulos no povo de Deus; 3. Um povo de Deus com espírito sinodal; 4. Um povo de Deus em saída rumo às periferias existenciais; 5. Um povo de Deus que “dá vida”; III. Escutar e discernir: os sinais de nosso tempo que mais nos interpelam: 1. A escuta, rota sinodal da Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe; 2. Sinais de nosso tempo, critérios de seleção; 3. A pandemia, um marco da mudança de época; 4. O cuidado da Casa Comum, um chamado urgente; 5. A crescente violência em nossas sociedades: um chamado a um maior compromisso pela não violência ativa e a promoção da paz; 6. O fortalecimento da democracia e a defesa e promoção dos direitos humanos; 7. Compromisso por uma educação integral e transformadora; IV. Escutar e discernir: os sinais eclesiais que mais nos interpelam: 1. Uma Igreja sinodal e evangelizadora: de todos e para todos (que aborda a questão da diversidade sociocultural na sociedade e na Igreja, os povos afrodescendentes, as pessoas com identidades e orientações sexuais diferentes, as pessoas com necessidades especiais); 2. O desafio pastoral de anunciar o evangelho nas famílias hoje; 3. Jovens, protagonistas da sociedade e da Igreja hoje; 4. Da pastoral na cidade à pastoral urbana; 5. Um novo lugar para a mulher na Igreja e na sociedade; 6. O clericalismo, como obstáculo para uma Igreja sinodal; 7. Os casos de abusos na Igreja; 8. O movimento evangélico pentecostal. O Documento termina com uma espécie de envio: “No Espírito, com Maria de Guadalupe, estamos em Assembleia”.

A Programação prevê Reflexões, Discussões em grupos, Painéis, sínteses dos trabalhos em grupos, depoimentos. Dentre os temas propostos se destacam: 1. A centralidade de Jesus Cristo e sua Palavra em nossa ação pastoral; 2. O caminho da Assembleia Eclesial; 3. A conversão pastoral integral e os quatro sonhos proféticos; 4. A Igreja em saída missionária; 5. Da Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe rumo ao sínodo da sinodalidade. Nos grupos, certamente serão discutidos os temas presentes na Síntese narrativa e no Documento para o discernimento. A Programação prevê ainda a elaboração de uma Conclusão e de uma Mensagem Final da Assembleia.

Apesar de o Brasil ter participado com um número significativo de respostas no período da escuta, e de também contar com uma presença importante de delegados/as na própria Assembleia, para que ela não se reduza a uma reunião a mais de uma elite da Igreja, é necessário que, para além dos títulos dos diversos temas acima elencados, o conjunto da Igreja tome conhecimento do que está sendo discutido e das questões que ela levantará. Como desejou o Papa ao propor a realização da Assembleia, para que a Igreja toda se torne sinodal, há ainda um longo caminho a ser trilhado. E esse caminho supõe que todos/as se impliquem no caminho que, nascido do Vaticano II, traçou, a partir da figura icônica de Aparecida, e converge na figura icônica de Guadalupe, novos modos de testemunhar a alegria e a mudança radical que se inaugurou com o Evangelho.

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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