Geraldo Luiz De Mori, SJ
“Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura… se é verdade tanto horror perante os céus?!” (Castro Alves. Navio Negreiro)
Desde 2011, o dia 20 de novembro entrou no calendário oficial como Dia da Consciência Negra, recordando a data da morte do famoso líder do Quilombo dos Palmares, Zumbi, símbolo da resistência à escravidão e de enfrentamento do racismo. Em 2023, o Congresso Nacional aprovou a lei que transformou essa data em feriado nacional, celebrado em todo o território do país a partir de 2024. Para muitas pessoas, trata-se de um feriado a mais, aproveitado como dia de lazer, passeio, descanso. No entanto, é importante resgatar seu significado, não só para quem é afrodescendente, mas para todos os brasileiros e brasileiras, pois o que se celebra é a memória de uma história que precisa ser redescoberta em toda sua amplitude, necessitando da cura de uma justiça restaurativa.
O Brasil nasceu e se consolidou como colônia e depois como nação independente às custas do trabalho escravo. Inicialmente, com as tentativas de submeter os povos originários que habitavam a ampla terra “descoberta”, mas, assim que o projeto colonial se organizou, com o trabalho de milhões de homens e mulheres arrancados de suas terras na África. Durante mais de três séculos esse regime imperou nos espaços do que depois seriam o território da nação que foi sendo criada. Em muitas ocasiões, os escravos fugiram do regime inumano que lhes era imposto, formando os quilombos, espaços em que podiam sobreviver sem que seus donos ou os capatazes que os representavam lhes impusessem a dura servidão. Um desses espaços, o mais conhecido de todos, na Serra da Barriga, hoje município de União dos Palmares, em Alagoas, teve seu líder aprisionado e morto. No resgate da memória da história do Brasil, que ganhou forte desenvolvimento com os movimentos de valorização da consciência negra surgidos durante o processo de redemocratização do país, a figura de Zumbi foi colocada como alternativa à da Princesa Isabel, que havia outorgado, em 1888, a libertação dos escravos. Muito caminho foi feito desde então, inicialmente, através da valorização da especificidade da cultura afrobrasileira, sobretudo no campo da estética, mas que demandaram e ainda demandam passos mais significativos, que passam por processos de caráter ético e epistemológico.
Esse caminho não foi dado de presente. Na verdade, nem a abolição da escravidão foi um presente, mas a tomada de consciência, por parte das elites mais “progressistas” da economia nacional, de que era mais rentável ter trabalho remunerado do que comprar, fazer reproduzir e sustentar mão-de-obra escrava. E a libertação dos escravos não significou que os que foram libertos tivessem sido alçados à condição de cidadãos, ou que tivessem sua nova condição reconhecida, com a concessão de terras para que pudessem sobreviver na nova condição. Muitos dos que tinham sido escravos continuaram vivendo nas antigas fazendas, tendo apenas o direito de plantar o que precisavam para sobreviver em troca do trabalho ainda prestado aos antigos senhores. Grande parte foi para as periferias das cidades que começavam a crescer em função da lenta transformação provocada pela modernização e industrialização do país. Segundo Jessé de Souza, somente com Getúlio Vargas, em função de um projeto de nação modelado segundo a perspectiva da ideia de “democracia racial”, é que muitos elementos da cultura negra começaram a ser valorizados no Brasil, sobretudo a partir da música, da dança, do futebol. Do ponto de vista religioso, por exemplo, os traços das diversas religiões africanas que haviam sobrevivido e se recriado em solo brasileiro, como o candomblé, o xangô, a macumba, o batuque e, a partir da década de 1930, a umbanda, eram tidos como suspeitos pelo catolicismo, e essas expressões das religiões afrobrasileiras eram muitas vezes perseguidas. A revalorização de muitos elementos estéticos continuou nas décadas seguintes, ganhando forte incentivo na literatura, na música e nos movimentos que foram se criando durante a redemocratização, também eles valorizando a “beleza” negra, com expressões muito bonitas que apareciam no cabelo, nas roupas, nos novos estilos musicais.
Dostoievski, na obra O idiota, afirma que a “beleza salvará o mundo”. Ele se refere à beleza que se encontra no dom que Jesus fez de sua vida, ao se entregar por amor até a morte na cruz. O teólogo Urs von Balthasar retoma essa afirmação em sua trilogia, que começa com uma “estética” teológica, passando em seguida para uma “dramática” e culminando numa “teológica”, cada uma delas modelada por um dos “transcendentais” do ser: a beleza, a bondade e a verdade. É possível, ao reler a história do processo da lenta valorização da contribuição da cultura afro no Brasil, afirmar que alguns passos foram dados no sentido de reconhecimento do belo que existe em tantas manifestações artísticas dos povos que vieram da África e participaram ativamente na formação não só da economia e da sociedade brasileira, mas também de sua cultura. A questão que emerge, porém desse processo é: até que ponto essa “beleza” tem sido caminho que leva à salvação, ou seja, até que ponto o reconhecimento dessa alteridade, que são os/as negros/as brasileiros/as, tem se traduzido em melhores condições de vida, em mais justiça e igual participação nos benefícios que ajudam a produzir? Certamente não se pode negar que houve alguns passos no sentido da defesa dos direitos, como os assegurados pela Constituição de 1988 aos territórios quilombolas, ou o reconhecimento de vários “patrimônios” imateriais construídos pelos povos de origem africana no Brasil. Também é importante valorizar, do ponto de vista legal, a política de cotas, que busca sanar a desigualdade de condições a partir das quais os filhos de pessoas negras disputam vagas nas universidades. Porém, os dados continuam revelando que “contra fatos não há argumentos”. Com efeito, os mais pobres no Brasil são negros, como também os que habitam em condições mais precárias, possuem menor taxa de escolaridade, são vítimas de todo tipo de violência e engrossam o número dos jovens que se encontram nas prisões.
Além dessa passagem do estético para o ético, que continua débil e lenta no Brasil, o caminho que leva ao epistêmico se revela ainda mais frágil, com alguns balbucios, embora muito importantes. Não se pode negar a contribuição de intelectuais negros na elaboração de muitos saberes no país. Porém, no lugar no qual esses saberes são construídos e reconhecidos como portadores da verdade do ser, a saber, as universidades, ainda há muito a ser feito. A desproporção entre brancos e negros continua gritante e a valorização da produção do saber vindo de negros e negras passa por um caminho mais laborioso de reconhecimento do que os de seus homólogos procedentes de outras origens.
Sem o percurso que da estética leve à ética e desta à afirmação da verdade do que se conhece, o caminho fica incompleto. A fé cristã tem uma dívida histórica na construção desse tríplice caminho, pois, durante todo o período colonial não foi lúcida o suficiente para opor-se ao regime que não reconhecia em sua dignidade infinita os que eram submetidos à escravidão. A comemoração de um Dia da Consciência Negra num país que por séculos viveu do regime escravocrata e depois desse regime não soube reconhecer a igual dignidade dos que foram seus principais construtores, é um convite a colocar-se numa escola que, para além do reconhecimento do valor da beleza de tudo o que provém dessa população, forme as pessoas para um trabalho de justiça restaurativa para com ela. E as igrejas cristãs são chamadas a não só reconhecer que foram coniventes com o regime escravocrata, mas a participarem do processo que leve do reconhecimento da beleza de negros e negras, à contribuição para o resgate de sua humanidade desprezada ao longo dos séculos e ainda ativa, reconhecendo igualmente tudo o que produz de verdade.
Geraldo Luiz De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
Foto: Cris Faga / Shutterstock