Pe. Alfredo Sampaio Costa, SJ
A Campanha da Fraternidade deste ano traz novamente à tona o tema da Ecologia Integral, à luz do magistério de Francisco. Somos interpelados a darmos uma resposta corajosa e solidária à crise ambiental que vai se agravando. O tema da ecologia integral é um dos mais essenciais e discutidos pelo Magistério da Igreja, pois reconhece que a dignidade de cada ser se manifesta plenamente numa lógica de relação com outros seres e com o mundo. Essa relação não se baseia no domínio, imposição ou competição, mas sim em uma ética de cuidado, cooperação e reciprocidade[1].
A Encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco, principal marca do tema, lembra-nos que “tudo está interligado” e que a crise ecológica é também uma crise social e moral. Em 2023, Francisco escreve a Exortação Apostólica Laudate Deum contribuindo e oferecendo pistas sobre a urgência de uma educação ecológica integrada e de uma experiência fraterna[2].
Propomos neste artigo refletir sobre a Campanha da Fraternidade ajudados pela Contemplação para Alcançar o Amor (=CAA), último exercício no itinerário proposto por Inácio e que devolve o exercitante à vida cotidiana na sua inserção no mundo e na Igreja. Nos deteremos mais no segundo dos quatro pontos que Inácio propõe, o “ver como Deus habita nas criaturas”(EE 235), com toda sua força sintética e abrangente, numa proposta de espiritualidade holística, unificadora e integradora, tão necessária em um mundo de oposições e polarizações alimentadas por intolerâncias e radicalismos.
A “Contemplação para alcançar o Amor”, um novo modo de ver a vida e de situar-se nela ela amando e servindo
Levar a sério o que o Papa Francisco propõe implica uma mudança de mentalidade, exige um novo olhar sobre a realidade do criado. Ora, é exatamente isso que Inácio deseja ao propor como último exercício espiritual a “Contemplação para alcançar o amor”.
Não parece um pouco pretencioso considerar que podemos alcançar o Amor de Deus? Não seria mais humilde dizer “Contemplação para nos deixarmos alcançar pelo Amor de Deus?” Bem, em espanhol o verbo “alcançar” tem dois possíveis significados: o de “obter”, com acento no doador e o de “conseguir”, com acento no exercitante e no esforço humano que o dom requer[3]. Por isso vemos alguns comentadores oscilarem ao nomear esse exercício entre “ser alcançados pelo Amor” ou “alcançar o Amor”. O Padre Ulpiano comenta que “na CAA o que se pede é muito importante e é preciso de todos os intercessores e de muita graça para poder alcançar o amor. Não diz se sou eu que alcanço o amor ou se esse amor é que me alcança”[4]. Inácio é muito sóbrio nos Exercícios ao falar do Amor. Mas aqui ele deixa falar o seu coração. Os Exercícios espirituais que, no seu início, recordavam como seu fundamento que somos continuamente criados pelo Criador (cf. EE 23), conclui-se com um apelo a amarmos e sermos amados na nossa relação com o universo.
Quando Inácio, terminados os 30 dias de Exercícios, reenvia o exercitante à vida ordinária, não o faz como se o processo espiritual deste tivesse terminado. Muito pelo contrário. Os Exercícios não concluem nada; o que fazem é abrir a pessoa a uma nova forma de ver a realidade e de se situar nela, uma nova espiritualidade e seu processo correspondente, cuja síntese é oferecida na “Contemplação para alcançar o Amor”. Trata-se de uma ponte entre os Exercícios e a vida ordinária, de uma “lente de contato” que conserva um especial encanto e poder transformador. E no mundo para onde retornamos e no qual vivemos, a relação com o criado seguirá sendo fundamental.
O Pe. Geraldo de Mori observa que quase quarenta anos separam a primeira e a última Campanha da Fraternidade dedicadas a um tema socioambiental[5]. O impacto dessas oito CFs na consciência eclesial não pode ser negligenciado, seja nas ações que a Igreja promoveu, seja nas iniciativas da sociedade civil com as quais colaborou. Mas é preciso continuar avançando na direção de uma “cultura da ecologia integral”, que exige uma “conversão ecológica” (cf. Texto-base da CF 2025, n.4).
Um olhar detido, pausado e repleto de afeto
Deus é uma Presença real, mas também escondida. Não se acede a Ele sem mais pelos olhos corporais, mas sim pelos olhos da fé, pelos olhos do coração. Os nossos olhos corporais precisam de uma lente especial para perceber uma realidade que, de outra forma, permaneceria inacessível a eles. Uma lente de contato através da qual possamos olhar o mundo, os demais e a nós mesmos de um modo novo.
Como fazer isso? Contemplando as raízes sagradas das coisas como propõe Inácio de Loyola na Contemplação para alcançar o amor. Trata-se de exercitar um olhar demorado e amoroso sobre a realidade que a descobre como originada e habitada por Alguém, fluindo desse Alguém, dada ao homem como presente. Alguém que a transcende, mas que ao mesmo tempo é o seu fundamento permanente e que, portanto, existe e se faz presente e acessível nela. São Paulo tem esse olhar contemplativo que descobre que Deus é mais real do que o mundo, mais do que as coisas e nós mesmos, já que “Nele nos movemos, existimos e somos”; é um Deus que “dá a vida a tudo, o alento a todas as coisas” (At 17,25-28).
Abraçar e deixar-se abraçar pelo Amor: a atuação do Espírito na Criação[6]
A Contemplação para deixar-se alcançar pelo Amor possui também uma marcada dimensão pneumatológica. Santo Agostinho na sua obra sobre a Trindade[7], apresenta como traços que descrevem o Espírito Santo a comunhão, o dom e o amor(caridade). Inácio insistirá no fato que “o amor consiste na comunicação das duas partes, a saber, no dar e comunicar do amante ao amado” (EE 231).
Alguns breves acenos ao texto dos Exercícios:
Uma Composição de Lugar inclusiva, participativa (EE 232)
“Ver como estou diante de Deus N. Senhor, dos anjos e dos santos que intercedem por mim”.
Esta composição de lugar recorda a oblação feita ao “Eterno Senhor de todas as coisas” (EE 98). Para Santo Inácio esta composição de lugar é um símbolo de uma verdade cristã: que estamos sempre diante de Deus e de Cristo, como também diante da Virgem Maria e todos os anjos e santos que intercedem por mim. Esta visão suscita um comportamento, um modo de viver, agradecido, admirado, maravilhado. É nesse ambiente que se desenvolverá toda a CAA. Portanto, como notava já o querido Padre Ulpiano, não é uma oração individualista, ao contrário, é feita em comunhão com todo o universo!
Admiração e agradecimento, eixos da “mudança de olhar” (EE 233)
Sabemos da importância que tem o pedido da Graça em cada exercício. Neste último, Inácio indica: “Pedir o que eu quero: será aqui pedir conhecimento interno de tanto bem recebido, para que eu inteiramente reconhecendo possa em tudo amar e servir a sua divina majestade” (EE 233). Não é o mesmo conhecer uma coisa do que reconhecê-la. O conhecimento descobre a estrutura interior e exterior das coisas, mas não diz nada sobre o seu sentido e sua procedência última. O reconhecimento penetra a realidade até descobri-la como dom de alguém para mim, para nós. Para conhecer as coisas não faz falta a fé. Mas reconhecê-las na sua qualidade de dom não é possível sem ela.
Em 2025, a CF aborda outra vez a temática ambiental, consciente de que se trata de uma temática urgente. Estamos no decênio decisivo para o planeta! Ou mudamos, convertemo-nos, ou provocaremos com nossas atitudes individuais e coletivas um colapso planetário (CNBB, Campanha da Fraternidade 2025: texto-base. Brasília: Edições CNBB, 2024. n.8).
Pois bem, o que Inácio pede nesta oração é que o conhecimento interno do real produza em nós um reconhecimento, isto é, a consciência agradecida da sua procedência, do seu caráter de dom de Deus ao ser humano. Não poderia ser de outro modo! Como poderia um ser humano contemplar a realidade do mundo, de Jesus Cristo, da sua própria vida como provenientes de Deus e os seus dons pessoais sem saltar de admiração e júbilo por isso, sem encher-se de um profundo agradecimento?
Nada dinamiza tanto o amor humano como a experiência de que alguém nos ama gratuitamente e fez coisas importantes por nós. Se isso é verdadeiro quando aplicado à experiência humana, muito mais quando aplicado a Deus. Assim se explica porque Inácio pede a Deus nessa contemplação a graça do reconhecimento, sinônimo também de agradecimento, para que este se transforme em amor e serviço. Amor, seguimento e serviço estão estreitamente vinculados no pensamento de Inácio. São expressões distintas de uma realidade fundamental que deve ser uma atitude habitual: o amor. A pessoa a quem nos propomos a seguir e servir é sempre Jesus, e Inácio quer que “a Ele vá encaminhado todo o peso do nosso amor” (Monumenta Ignatiana, Epp. I, 514). A maneira como nos é dado amar, seguir e servir a Deus é amando, seguindo e servindo a Jesus[8]. O qualificativo que Santo Inácio dá ao conhecimento: “conhecimento interno”, “inteiramente reconhecendo” faz pensar em uma autêntica experiência existencial do amor de Deus manifestado e atualizado em Cristo, e experimentado ao largo dos Exercícios. Jesus Cristo é o termo absoluto, recapitulador e último do amor do Pai, Ele é o Filho amado e Nele todos os homens e o mundo. Para o cristão crer, esperar e amar a Deus é crer, esperar e amar a Cristo[9]. Ao redescobrir esse vínculo espiritual com a natureza, somos impulsionados a viver de forma mais simples e responsável, promovendo estilos de vida que respeitem os limites do planeta e favoreçam a justiça entre as gerações presentes e futuras. Dessa forma, a espiritualidade ecológica nos conduz a uma verdadeira conversão ecológica, comprometida com o cuidado da casa comum e com a construção de uma sociedade mais justa e fraterna[10]. A encíclica LS sublinha esta conexão: O ambiente humano e o ambiente natural se degradam juntos, e não poderemos enfrentar adequadamente a degradação ambiental se não prestarmos atenção às causas que têm a ver com a degradação humana e social (Laudato Sì, n. 48).
Pe. Alfredo Sampaio Costa, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
[1] Cf. André Luiz Boccato de Almeida, Julian Carlos de Camargo e Lupeke Nicholaus Prosper, A fraternidade cristã e a ecologia integral no Papa Francisco: uma reflexão teológica sobre um novo humanismo a partir do cristianismo. Encontros Teológicos 39/3 (Set-Dez 2024) 755.
[2] Robson Ribeiro de Oliveira Castro, Campanha da Fraternidade 2025: um chamado da Doutrina Social da Igreja à ação pela Ecologia Integral. Encontros Teológicos 39/3 (Set-Dez 2024) 724.
[3] José Antonio García,”Amor”, em GEI, Diccionario de Espiritualidad Ignaciana, Bilbao/Maliaño: Mensajero/Sal Terrae 2007. 94.
[4] Ulpiano Vázquez, A Contemplação para alcançar amor, São Paulo: Loyola 2005, 50.
[5] Geraldo Luiz de Mori, Ecologia integral: da responsabilidade à solidariedade. Encontros teológicos 39/3 (Set-Dez 2024) 707.
[6] Cf. José María Lera Monreal, La Pneumatología de los Ejercicios espirituales. Una teologia de la cruz traducida a la vida. Santander-Bilbao: Mensajero-Sal Terrae 2016, 123ss.
[7] Santo Agostinho, De Trinitate, V, 11-12.
[8] Cf. Juan Alfaro, Cristología y Antropología, Madrid: Ediciones Cristiandad 1973, 434.454.462.
[9] Cf. Juan Manuel García de Alba, La contemplación para alcanzar Amor a Jesús en los escritos de San Ignacio, 95.
[10] Robson Ribeiro de Oliveira Castro, Campanha da Fraternidade 2025: um chamado da Doutrina Social da Igreja à ação pela Ecologia Integral. Encontros Teológicos 39/3 (Set-Dez 2024) 738.
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