Educar desde as margens

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Bruno Pettersen

Um dos desafios fundamentais da educação contemporânea diz respeito à inclusão da diversidade. Trata-se de emancipar o futuro educador não apenas para ensinar conforme uma tradição estabelecida, mas de capacitá-lo a pensar criticamente a diversidade presente na realidade. A pergunta que se impõe é: como realizar essa inclusão de modo efetivo e não apenas formal, restrita a documentos legais? Neste breve texto, quero reconstruir o cenário desse debate em nossos dias, para servir como ponto de partida para aqueles interessados em um novo modelo racional e pedagógico que se revela em nosso tempo. Será um texto um pouco maior do que costumo escrever nessa coluna, mas acho que vale a pena neste caso.

O primeiro ponto a ser considerado diz respeito ao reconhecimento de que as diferenças presentes na sociedade brasileira não são meramente acidentais, mas parte estrutural da própria formação do país como nação. Nesse sentido, é importante retomar uma das obras centrais para a compreensão da multiplicidade cultural brasileira: O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro (1922–1997). Nessa obra, o autor, com base em sua formação como antropólogo, reconstrói as diferentes formas de ser brasileiro — os “Muitos Brasis” — e evidencia que essa diversidade foi historicamente constituída às custas da violência contra corpos negros, indígenas e femininos.

A Lei 11.645/2008, que modifica a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) — esta última marcada fortemente pela atuação de Darcy Ribeiro em sua formulação —, visa justamente reconhecer a exclusão histórica de culturas fundamentais para a constituição do Brasil. A lei institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena. No entanto, para que essa medida não se restrinja ao campo simbólico, é preciso que a diversidade esteja presente também no interior das universidades e nas salas do ensino básico. É necessário reconhecer o apagamento dessas culturas e, a partir disso, reintroduzir suas múltiplas formas de pensar, sentir e existir.

Do ponto de vista intelectual, autores brasileiros têm se destacado na proposição de um pensamento situado, não eurocentrado. Ailton Krenak (n. 1953), líder indígena da etnia Krenak, tem sido uma das principais vozes contemporâneas nesse campo, ao propor uma cosmologia e uma política da terra radicalmente distintas da racionalidade ocidental moderna. Nesse mesmo esforço, destacam-se Eduardo Viveiros de Castro (n. 1951), antropólogo que elaborou o conceito de “perspectivismo ameríndio”, e Davi Kopenawa Yanomami (n. 1956), xamã e líder indígena, cuja obra A Queda do Céu, escrita em coautoria com Bruce Albert, denuncia a destruição da floresta e a violência contra os povos originários.

Esse movimento, no entanto, não é exclusivo do Brasil. Em escala internacional, assiste-se a uma importante retomada de vozes historicamente silenciadas. O pensador martinicano Frantz Fanon (1925–1961), autor de Pele Negra, Máscaras Brancas e Os Condenados da Terra, foi um dos primeiros a diagnosticar com clareza a violência colonial sobre os corpos negros. Posteriormente, Angela Davis (n. 1944), filósofa e ativista norte-americana, articulou de maneira pioneira a intersecção entre racismo, patriarcado e sistema prisional, abrindo novos caminhos para o pensamento feminista negro. Também se destaca a socióloga e pensadora indígena boliviana Silvia Rivera Cusicanqui (n. 1949), cujos trabalhos repensam a colonialidade do poder e propõem formas próprias de saber dos povos originários andinos.

Esse esforço de inclusão não se limita, portanto, a uma reparação histórica — embora esta já fosse, por si só, urgente e inadiável. Trata-se, sobretudo, de um gesto epistemológico e ontológico. Envolve repensar as próprias bases do saber, da estética, da metafísica e da linguagem. É nesse sentido que o reconhecimento das racionalidades não brancas não representa uma concessão, mas um enriquecimento da própria filosofia. Darcy Ribeiro já afirmava que o povo brasileiro era especial justamente pela multiplicidade que lhe foi imposta, e que agora, incorporada, se tornou nossa marca mais vital.

Nesse campo, destacam-se as contribuições de Walter Mignolo (n. 1941), filósofo argentino radicado nos Estados Unidos, e Boaventura de Sousa Santos (n. 1940), sociólogo português. Ambos têm trabalhado para descolonizar o saber e propor novas formas de produção de conhecimento, com destaque para a obra Epistemologias do Sul. No mesmo espírito, o camaronês Achille Mbembe (n. 1957) desenvolveu, em Crítica da Razão Negra, uma análise poderosa das continuidades do racismo no pensamento ocidental. Não se trata de excluir Platão para incluir Krenak, mas de colocá-los lado a lado: pensar, afinal, é abrir espaço para outras ontologias, linguagens e concepções de beleza. Reconhecer a multiplicidade é arejar o pensamento e ampliá-lo.

A educação precisa partir desse princípio: emancipar por meio da inclusão profunda das diferenças. Isso significa ensinar Platão e Tomás de Aquino, mas também recuperar vozes que foram apagadas por séculos de dominação epistêmica. As estruturas educacionais têm se movimentado nesse sentido — basta observar os temas propostos nas redações do ENEM nos últimos anos, que abordaram, por exemplo, o “cuidado realizado pelas mulheres” e a “compreensão das comunidades de povos originários”.

A pergunta que se coloca para nós, professores no ensino superior, é clara: como formar professores que, por sua vez, sejam capazes de formar sujeitos livres? Essa questão é talvez aquela fundamental na educação desde as primeiras reflexões gregas sobre o assunto, mas em nossos dias plurais, com contatos culturais muito mais intensos e especialmente, com o claro reconhecimento do apagamento de muitas culturas, essa questão toma outra monta. Como início da atividade de inclusão, precisamos ter algumas iniciativas no campo da Filosofia no Brasil:

  1. Reconhecer que a diversidade de reflexões não está presente de modo amplo na maioria dos currículos de Filosofia no Brasil;
  2. Instituir medidas administrativas para abrir espaço para reflexões historicamente excluídas, como a dos povos originários, a africana e afrobrasileira, a feminina, entre outras;
  3. Assegurar a possibilidade dessas reflexões não apenas nos currículos, mas nas leituras dos alunos, disponibilizando textos acessíveis ao nível de formação apropriado.

Não se trata de diminuir a quantidade de Aristóteles ou de Kant na graduação, mas sim a necessidade de compreender que a riqueza da reflexão vem justamente da diversidade, do encontro e do desencontro de reflexões. É preciso que nós, que não somos Ocidentais, nos reconheçamos como tendo um lugar de transformação do mundo e da realidade pedagógica sempre focada no modelo europeu de se pensar. Educar desde as margens, porque, ao fim e ao cabo, nós somos a margem.

Bruno Pettersen é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

26/06/2025

Imagem: Shutterstock

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