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Eles estão no meio de nós! – Covid19, biopolítica e aplicativos

Elton Vitoriano Ribeiro SJ

Vivemos num mundo de aplicativos para dispositivos eletrônicos. Segundo o Centro de Tecnologia de Informação Aplicada da FGV (Fundação Getúlio Vargas), numa pesquisa realizada em 2020, o Brasil possui aproximadamente 424 milhões de dispositivos digitais como computadores, notebooks, tabletes e smartphones. São quase dois dispositivos por habitante. O número de celulares é impressionante, são aproximadamente 245,4 milhões de celulares. No primeiro trimestre de 2021 a venda de celulares cresceu 3% em meio à crise financeira e a pandemia. A área de Tecnologia da Informação é uma das mais promissoras no mercado, e mesmo a barraquinha da esquina de manutenção e venda de acessórios para celulares tem seu sucesso financeiro garantido.

Todos estes dispositivos funcionam com e por meio de aplicativos, os famosos Apps (Application). Os aplicativos são programas (software) que auxiliam os usuários a realizarem determinadas tarefas que, geralmente, envolvem processamento de dados. A calculadora, o despertador do celular, os aplicativos para pedir comida ou carro, passando pelas redes sociais e os sistemas de controle da saúde, tudo são dados que os aplicativos gerenciam para “facilitar a nossa vida” neste mundo digitalizado em que habitamos. Portanto, se você tem um celular, o que é muito provável, também é certeza que ele tenha instalado muitos aplicativos que, com um simples toque, nos abrem um universo de possibilidades e ferramentas. Admirável mundo novo!

Todos esses aplicativos para funcionarem precisam de uma série de acessos aos nossos dados. Onde estou? O que quero ler e ver? Quais minhas buscas, perguntas e preferências? Os aplicativos nos conhecem, como gostam de dizer hoje seus programadores, melhor do que nós mesmos. Neste cenário digitalizado, no qual já vivemos, porque não ampliar as possibilidades e passar a rastrear pessoas contaminadas com o Covid-19? Assim, poderemos saber quais são as pessoas que nos circundam e nos proteger delas, ou no caso de um contágio, proteger as outras pessoas com as quais tivemos contato direto ou mesmo indireto.
A ideia de controlar os contágios por Covid-19 já está sendo adotada em vários países do mundo. Desde o início da pandemia, as tecnologias para alertar imediatamente as pessoas que entraram em contato com algum portador do coronavírus fizeram parte das estratégias adotadas para controlar a pandemia. Coréia do Sul, China, Cingapura e Austrália se destacaram. Mesmo a França, Itália e Reino Unido pensaram em algum tipo de “aplicativo ético”. Por “aplicativos éticos” classificaram-se os aplicativos que protegessem a privacidade, a igualdade e a justiça no rastreamento dos contatos. Mas, o que exatamente significa isso?

Toda essa discussão sobre “aplicativos éticos” está muito bem apresentada num artigo da Revista Nature (582, pp. 29-31, 2020) intitulado “Ethical guidelines for Covid-19 tracing apps” (Diretrizes éticas para aplicativos de rastreamento do Covid-19). O artigo, de 28 de maio de 2020, é assinado pelos prestigiosos pesquisadores do Digital Ethics Lab da Universidade de Oxford. Neste artigo, os pesquisadores apresentam o contexto atual do desenvolvimento destes aplicativos pelo mundo e os preços sociais que estas intervenções digitais podem ter para as sociedades. Corretamente, eles levantam algumas questões sobre as necessárias considerações éticas, principalmente, sobre a ameaça à privacidade que este tipo de intervenção acarreta.

Eles também, apresentam muito bem os perigos que este tipo de aplicativo pode gerar como erros, falsos positivos e pânicos injustificados, por exemplo. Ao tentar refletir sobre a necessidade de que estes aplicativos sejam programados tendo como fundamental, em suas intervenções, alguns princípios, os pesquisadores entram, propriamente, em questões filosóficas.

As questões filosóficas aparecem ao afirmarem que os princípios para este tipo de atividade devem ser a privacidade, a igualdade e a justiça. Para concretizar estes princípios na programação dos aplicativos, eles apresentam quatro princípios gerais (necessidade, proporcionalidade, validade científica e limitação temporal) e dezesseis perguntas que devem servir como diretrizes para o questionamento sobre a pertinência destes aplicativos em situações de pandemia. Finalmente, os pesquisadores terminam o artigo com as seguintes palavras: “Simplesmente lançar um aplicativo de rastreamento sem consideração ética não é aceitável. Mesmo em uma crise, uma abordagem de tentar tudo é perigosa quando ignora os custos reais, incluindo danos graves e duradouros aos direitos e liberdades fundamentais”.

Para ampliar a argumentação anterior é imprescindível ler o artigo do Jornal El País (22.03.2020) do filósofo Byung-Chul Han intitulado “O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã”. Nesse artigo, o filósofo argumenta que, ao que parece, a Ásia controla muito melhor a pandemia do coronavírus do que a Europa. Para justificar, ele apresenta algumas considerações, mas a principal é a de que para enfrentar o vírus, os asiáticos apostam fortemente na vigilância digital. Vigilância digital por meio de … aplicativos. Por exemplo, segundo o autor, cada atividade nas redes sociais é controlada e, praticamente, não existe a proteção de dados em alguns países asiáticos como, por exemplo, a China. Por isso mesmo, toda a infraestrutura para a vigilância digital se mostrou ser extremamente eficaz para conter os contágios. Rápida conclusão: a biopolítica digital, que acompanha a psicopolítica digital, controla ativamente, e de forma eficaz, as pessoas. Como se dá esse controle? Por meio de aplicativos. Portanto, apesar de ser importante uma discussão sobre a dimensão ética e jurídica dos aplicativos, como os aplicativos usam nossos dados e qual é a dimensão de nossa privacidade está envolvida, uma realidade salta aos olhos: os aplicativos são dispositivos fundamentais da vida contemporânea. Numa expressão: eles estão no meio de nós!

Elton Vitoriano Ribeiro SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia e Reitor da FAJE

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