Geraldo Luiz De Mori, SJ
“Procurar e encontrar a vontade divina, na disposição da vida para a salvação” (Santo Inácio, EE 1)
“Dois amores deram origem a duas cidades: o amor a si mesmo até o desprezo de Deus, a terrena; e o amor de Deus até o menosprezo de si, a celestial” (Santo Agostinho, Duas Cidades, XIV, 27)
Desde a morte do Papa Francisco, acontecida há um mês, todas as atenções do mundo se voltaram para Roma. Num primeiro momento, para acompanhar as cerimônias de adeus ao Pontífice que levou a profecia para o coração da Igreja, com seu jeito particular e suas inúmeras iniciativas visando à “reforma da Igreja”. Num segundo momento, para saber quem o sucederia, que culminou, no dia 8 de maio, com a eleição do Cardeal Robert Prevost, que escolheu para si o nome de Leão XIV. Nos dois momentos um enorme exercício de informação e interpretação vem sendo realizado, por jornalistas, cientistas sociais, homens e mulheres dedicados ao estudo, ao ensino e à reflexão teológica, sem contar as opiniões de cristãos/ãs de todas as confissões e de pessoas de outras religiões ou sem religião. Para milhões de pessoas, a Cidade Eterna tornou-se objeto de interesse e de curiosidade, simbolizando também expectativas e levando muitas pessoas a tomarem posição e a expressarem o que sentem e pensam.
Dois movimentos sintetizam o que se tem vivido nesse tempo. O primeiro, ligado ao Pontífice morto, remete à interpretação de seu legado. De fato, o Papa Francisco deu visibilidade e credibilidade impressionantes à Igreja e à sua missão no mundo, com seus gestos, palavras, iniciativas e orientações. Muitas de suas intuições suscitaram processos que, certamente, continuarão marcando a Igreja no futuro. Não se pode, porém, medir o que seria seu legado em tão pouco tempo, pois para isso é preciso recuo histórico. Só esse recuo dirá o que produziram os processos iniciados por ele no modo de ser, de agir e de pensar eclesiais. Isso não impede que se resgatem e se valorizem suas principais contribuições para a Igreja enquanto corpo vivo de fiéis que busca testemunhar sua fé em Jesus Cristo, e enquanto instituição presente numa sociedade e num mundo que se complexificaram tanto. A esse movimento de resgate da memória pertence ainda o sentimento de gratidão. Muitas pessoas se sentiram e se sentem gratas pelo que Francisco provocou no seio da Igreja e do mundo, aproximando-a mais do Evangelho e tornando-a uma intrépida defensora dos mais vulneráveis e uma aliada de todas as forças vivas que se empenham em assegurar o futuro da vida no planeta. A gratidão se tornou nas ruas de Roma durante seu funeral uma aclamação: santo subito!
O segundo movimento, despertado pela fumaça branca da chaminé da Capela Sixtina no dia 8 de maio, é o que fez boa parte do mundo voltar os olhares para o rosto, o nome e as primeiras palavras, atitudes e decisões do novo Papa. Esse movimento, inicialmente feito de curiosidade, foi logo em seguida substituído pelo exame acurado dos gestos e palavras do novo Pontífice, de sua história de vida, com fotos de muitas de suas atividades como missionário no Peru, Superior Geral da ordem Agostiniana e bispo também no Peru. Num mundo e num catolicismo polarizado, as análises propostas buscaram logo associar ou dissociar o novo Papa de Francisco. Suas primeiras palavras, retomando a saudação de Jesus Ressuscitado comunicando a paz, foram seguidas de uma referência a Santo Agostinho, segundo a qual, com os fiéis cristãos ele era cristão e para eles ele era bispo, pastor. A escolha do nome, inspirada na figura de Leão XIII, referência importante da doutrina social da Igreja, foi confirmada de modo ainda mais explícito no discurso que ele fez aos cardeais, evocando as grandes mudanças que a revolução industrial tinha provocado na vida das pessoas no tempo de Leão XIII e as grandes mudanças que a atual etapa do desenvolvimento tecnológico tem provocado sobre a humanidade, com uma menção direta à inteligência artificial.
Além dessas palavras, as vestimentas tradicionais utilizadas pelo novo Papa também chamaram a atenção, pois Francisco tinha renunciado a elas. Alguns a consideraram um sinal, como que uma mão estendida aos grupos mais tradicionais, que conheceram grande aumento no pontificado anterior. A insistência na unidade também foi bastante valorizada, como que confirmando a busca de diálogo entre opostos, tão difícil no mundo e na Igreja atualmente. Temas caros ao Pontífice anterior, como os olhos voltados para quem vive em condição de vulnerabilidade e o percurso sinodal também estiveram no primeiro discurso. Além desses temas, na homilia de início oficial do pontificado, do dia 18 de maio, voltou de novo a menção a Agostinho, com o tema do coração inquieto. Além de recordar Francisco, Leão XIV lembrava que no conclave os cardeais buscaram dar um novo pastor à Igreja “capaz de guardar o rico patrimônio da fé cristã e, ao mesmo tempo, de olhar para longe, para ir ao encontro das interrogações, das inquietações e dos desafios de hoje”. O novo Papa lembra ainda duas palavras que devem caracterizar o sucessor de Pedro: “amor e unidade”, referindo-se ao evangelho proclamado na missa que presidiu, e lembrando como essas duas palavras traduzem o serviço que a Igreja oferece ao mundo, insistindo novamente no tema da paz, recorrente em seus discursos.
Entre Francisco e Leão, além do reconhecimento agradecido de um pontificado marcado pela profecia e pelo retorno ao Evangelho, e da expectativa frente ao novo, também se situam duas tradições espirituais, postas em evidência em algumas análises: a que se inspira em Inácio de Loyola e a que é fecundada pelo pensamento de Agostinho de Hipona. Algumas dessas análises têm, por exemplo, mostrado o caráter estratégico-político próprio à tradição inaciana à qual pertencia Francisco e que marcou seu pontificado, contrapondo-a a elementos do pensamento de Agostinho, como o da “inquietude do coração” ou o da busca da unidade na Igreja, que já apareceram nos discursos do novo Papa. Alguns também lembram do pessimismo do Bispo de Hipona, que tanto marcou o cristianismo latino, sobretudo através da doutrina do pecado original, associada, em muitos movimentos espirituais, à insistência na condição decadente ou corrompida da natureza humana, para evocar certas posturas mais “conservadoras” ou “tradicionais” do novo Papa com relação a questões de tipo ético.
Esses traços das tradições espirituais inaciana e agostiniana, que correspondem em grande parte a muitos elementos do pensamento e do legado de Inácio e de Agostinho, precisam também se deixar fecundar por aquilo que ultrapassa os estereótipos. Inácio de Loyola não foi somente um estrategista com um projeto político, mas um homem que se deixou conduzir pelo Espírito, oferecendo à fé cristã aquilo que, talvez, seja sua principal contribuição, a do “discernimento dos espíritos”, tão valorizada por Francisco no processo sinodal e no modo como governou a Igreja. O mesmo se pode dizer de Agostinho, que não é apenas o homem do coração inquieto ou o pessimista pensador da condição pecadora da humanidade, mas também o grande observador e leitor de seu tempo, que soube, após o final do Império Romano do Ocidente, oferecer uma leitura “política” da fé cristã, na obra Cidade de Deus, que é, sem dúvida, uma de suas principais contribuições à filosofia da história, para o qual a fé cristã e a Igreja nunca podem se identificar com nenhuma expressão da “cidade terrena”, pois, enquanto durar a história, o ser humano trará sempre no seu coração o drama da luta das duas cidades. Nesse sentido, como manifestou o novo Pontífice na homilia de inauguração de seu pontificado, a busca da unidade e da comunhão na Igreja tem como finalidade torná-la “fermento de um mundo reconciliado”, que, como tantas vezes insistia seu predecessor, precisa aprender a construir pontes e não muros. Que a unidade na Igreja, expressa pelo novo sucessor de Pedro, a leve a ser instrumento e sacramento de unidade para o mundo.
Geraldo Luiz De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE