Escrita, obra e leitura: algumas reflexões

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Patrícia Reis

O que escrever? Mas será que vale a pena? Quem vai se interessar por isso? E se a crítica for dura? Se os erros de português forem gritantes? Se as frases – cristalinas para o autor – forem truncadas e sem nenhum sentido para o leitor? Mas talvez só queiramos nos expressar um pouquinho, nos mostrar devagar, sem muito alarde, sem expectativas de receber respostas positivas.

Mas dizer o quê? Injustiça social? Guerras? Mudanças de ethos? Questões do cotidiano? Cultura geral? Agradecimentos? Repúdios? São tantos assuntos… E como  escrever algo que seja menos pessoal, menos íntimo? Ou valeria a pena (por que não?) explorar mais esse lado?

A vida de cronista não deve ser fácil. Ter que pensar sempre num assunto e expor ao público – seja para duas pessoas ou para milhões – dá trabalho (será que os assíduos das redes sociais concordam com essa ideia?). Muitos fazem para si o desafio e o aceitam: dão sua cara a tapa. Outros, de modo oposto, não encaram a escrita e a exposição de pensamentos como uma dificuldade.

E uma pessoa que escreve algo expressa, realmente, suas convicções? Ou, como diria Fernando Pessoa, o poeta é, na verdade, um fingidor? Se considerarmos que sim, somente a poesia pressuporia esse fingimento? E os outros estilos literários? E as obras filosóficas? Acreditamos que mesmo essas podem envolver uma simulação. Ora, quantos pensadores não tiveram que disfarçar suas ideias e escrever nas “entrelinhas” por medo da perseguição? Diante disso, como decifrar certos enigmas filosóficos expressos não somente em tratados, mas na arte, no teatro, entre outros?

No capítulo “Sobre o arrependimento” de seus Ensaios, Montaigne afirma que, em certas circunstâncias, podemos recomendar ou acusar a obra, separadamente do operário. Mas alerta o filósofo que, nos seus escritos, isso não é possível, pois quem os acusa ou os elogia, exalta ou censura o próprio autor.

Tal assunto nos leva a pensar a distinção entre autor e obra. Será que podemos elogiar o trabalho de alguém que, na vida particular, praticou ou defendeu ideias crueis? Há uma resposta pronta para toda situação que envolva essas noções? Essa reflexão não poderia se estender para outras searas, como o cinema, a arte, a literatura etc.? Deveríamos parar de assistir aos filmes de Woody Allen ou Roman Polanski?

Para algumas pessoas, não há problema em estudar um autor, mesmo que, em certos aspectos de sua vida, suas condutas não sejam exemplares. E quando o filósofo que estamos pesquisando defende ideias com as quais não concordamos? Consideramos pertinente o argumento de que o pesquisador de filosofia não é um militante ou um advogado que tenta, a todo custo, defender as posições de quem ele estuda. Com base nisso, podemos, inclusive, mostrar, na nossa argumentação, os pontos por ele defendidos que consideramos problemáticos.

Hegel, por exemplo, é criticado por ter defendido certos pensamentos a favor do que chamamos hoje de neocolonialismo. Mas essa posição de Hegel seria algo suficiente para anular todo seu trabalho filosófico? Outros pensadores que também causam certo desconforto em alguns estudiosos são Martin Heidegger e Carl Schmitt. Muitos questionam: “Seria possível reconhecer a grandeza das obras de certos autores que defenderam o nazismo”? Os que respondem afirmativamente a essa pergunta argumentam que um filósofo pode ter tratado de inúmeros assuntos de modo original e interessante. Não bastasse isso, em alguns casos, devemos conhecer as teorias de certos pensadores – por mais que não concordemos com elas – para reconhecer quando elas estão sendo aplicadas na prática e, assim, prever as consequências disso. Em outras palavras, se queremos entender como nos defender de regimes autoritários, não deveríamos estudar bastante os autores que trataram de tais regimes, ainda que os apoiando? Ou até mesmo por isso? Ora, tal caminho não poderia ser uma forma de entender os vários autoritarismos presentes nos nossos dias, inclusive no nosso país?

Não podemos deixar de tratar, também, da recepção de uma obra. Como o intérprete recebeu essa obra e como a interpretou? Quais pontos ele quis desenvolver, por quais ele se interessou? Existe uma interpretação unívoca de uma obra filosófica? Em caso afirmativo, como explicar que haja “hegelianos de direita” e “hegelianos de esquerda”? A grandeza de uma obra talvez esteja justamente neste ponto: pessoas de posições até mesmo opostas podem se apoiar nela para defender suas ideias.

Por ora, com a desculpa de sermos iniciantes, já nos vamos despedindo. Sem antes, no entanto, deixar de reconhecer que, apesar de não ser fácil expressar algo de modo escrito, isso traz, sim, um sentimento de contentamento. E, se sabemos que algumas das nossas reflexões despertaram interesse em alguém (inclusive para divergir de nós), tal sensação aumenta ainda mais…Terminamos este pequeno texto nos inspirando no pedido que Montesquieu fez para o seu leitor no prefácio de sua obra “Do Espírito das Leis”: “Não julgue passagens dos meus escritos, mas o conjunto todo e, também, não apenas leia o texto, mas pense nas ideias presentes nele”. Vida de leitor também não é fácil…

 

Patrícia Reis é professora no departamento de Filosofia da FAJE

(07/08/2025)

Foto: Shutterstock

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