Francisco das Chagas de Albuquerque, SJ
A escuta é, antes de tudo, uma atitude humana fundamental para estabelecer relações de entreajuda capazes de gerar transformações que levam ao crescimento das pessoas e grupos interessados no desenvolvimento de sua humanidade. Escutar é mais do que ouvir, captar sons produzidos de maneira organizadas ou que surgem ao acaso. Trata-se de ouvir com atenção aquilo que está sendo comunicado seja no diálogo ou na interação grupal. A postura de atenção autêntica à recepção da mensagem comunicada abre vias para que sejam alcançados os objetivos desejados pelos interlocutores, os participantes do diálogo ou da conversação.
Vários são os âmbitos e lugares em que a escuta pode se dar, dependendo da especificidade do que é oferecido ou proposto e do que buscam as pessoas envolvidas em determinada interrelação. Situando-nos no campo do acompanhamento e orientação de pessoas em vista do seu aprimoramento humano, espiritual ou cura de problemas de ordem físico-biológica, entre outras possibilidades, identificamos: o espaço do atendimento médico, a área da psicologia, da espiritualidade com seus vários ramos. O título “escuta solidária, reconciliação, fraternidade” tem sua motivação enraizada na espiritualidade cristã e vem a propósito do tempo que os católicos estamos celebrando, o Tempo da Quaresma. Na história do povo Deus, consignada na Sagrada Escritura, encontramos inúmeros relatos em que se verifica o exercício da escuta entre Deus e aqueles a quem ele se revela e aos que chama para realizar uma missão. São ilustrativos os exemplos selecionados dos textos bíblicos.
No Antigo Testamento, recordamos o diálogo entre Deus e Abraão, por ocasião do episódio da prova da fé desse patriarca. O Senhor pede-lhe o sacrifício do único filho Isaac, mas ao final do relato Deus providencia um carneiro para o sacrifício. “Não estendas a mão contra o menino! Não lhe faças nenhum mal! Agora sei que temes a Deus: tu não me recusaste teu filho, teu único” (Gn 22,12). No processo de libertação dos israelitas da opressão no Egito, o Deus libertador escuta os clamores do povo e vem libertá-los, com a mediação de Moisés. “Ouvi seu grito por causa dos seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci para libertá-los da mão dos seus opressores e fazê-los subir desta terra para uma terra boa e vasta” (Ex 3,8).
No Novo Testamento, Jesus é o mestre da escuta solidária, empática e transformadora dos discípulos e daqueles que o buscavam pedindo-lhe misericórdia. Ele age revelando a misericórdia e o carinho do Pai, como a perícope dos dois cegos de Jericó, que lhe suplicaram a cura, ao que ele respondeu: “Que quereis que vos faça?” – “Que nossos olhos se abram”. E os curou: “Movido de compaixão Jesus tocou-lhes os olhos e, imediatamente, eles recuperaram a visão” (Mt 20,29-34). Por outro lado, Jesus escuta também a crítica legalista dos fariseus sobre a diligência dos discípulos ao passarem pela plantação de trigo e fazerem o que era proibido no sábado. Respondeu-lhes, esclarecendo que a dignidade do ser humano está acima de todo legalismo sem alma. “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado; de modo que o Filho do Homem é senhor até do sábado” (Mc 2,23-28).
Na experiência eclesial, a escuta tem um espaço privilegiado nas oportunidades em que as pessoas buscam o acompanhamento espiritual e da celebração dos sacramentos, especialmente o sacramento da reconciliação, costumeiramente denominado confissão. Por ocasião da ocasião do ato da “confissão” ocorre a escuta solidária daquele(a) que busca a graça da reconciliação. Nesse diálogo a pessoa se colocam na posição de discípulas do Senhor, manifestando o desejo de receber o perdão e a reconciliação com Deus, com a comunidade eclesial, com o próximo e consigo própria, ocorre a escuta solidária, o acolhimento. Mas antes de realizar o ato sacramental propriamente, a escuta torna-se em si mesma como que um sacramento enquanto experiência humana. Claro que não se trata do sacramento instituído e celebrado conforme a determinação da Igreja, mas como escuta fraterna e solidária e acolhimento que leva a pessoa, em muitos casos, a sentir-se reconciliada consigo mesma e diante do Senhor. O ato sacramental se consuma, quando o(a) fiel recebe, em Deus Trindade Santíssima por meio da Igreja, representada pela pessoa do ministro ordenado, o dom do perdão. Neste tempo quaresmal muitos fiéis vivenciam essa experiência sacramental com consolações.
Como dizíamos no início deste escrito, a escuta é uma atitude humana que se expressa no ato de prestar atenção ao que o outro me fala. A escuta se torna um gesto solidário em vários contextos. Dessa forma, ela se dá de modo amplo no cotidiano de muitas pessoas e comunidades, especialmente quando as relações interpessoais são fecundadas pelo interesse da solidariedade e da ajuda, seja ela meramente profissional ou motivada pela fraternidade. Os cristãos, as cristãs somos chamados(as) a escutar o próximo de maneira solidária e fecunda de tal modo que essa prática se desdobra através de outros gestos e ações de entreajuda concreta, de doação de si, de partilha, enfim, torna-se geradora de fraternidade e amizade social.
Portanto, a escuta é uma janela que está ao alcance de todo ser humano desenvolvê-la e, dessa forma, pode contribuir para o aperfeiçoamento de sua humanidade enquanto pessoa. A escuta solidária abre caminho para a reconciliação, para além do âmbito sacramental-religioso. Ela é fundamental para gerar pessoas mais humanas e, consequentemente, uma sociedade onde floresça a justiça, a paz, a real solidariedade. Lembra-nos Francisco na Carta encíclica Fratelli tutti, n. 48: “Sentar-se a escutar o outro, caraterístico dum encontro humano, é um paradigma de atitude receptiva, de quem supera o narcisismo e acolhe o outro, presta-lhe atenção, dá-lhe lugar no próprio círculo”.
Francisco das Chagas de Albuquerque, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
