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EUCARISTIA: as muitas dimensões de um mistério

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Frei Sinivaldo Silva Tavares, OFM

A solenidade de Corpus Christi se apresenta como ocasião propícia para refletirmos sobre a exuberante riqueza da Eucaristia. Gostaríamos de fazê-lo explicitando distintas dimensões desse augusto mistério. Concebida como testamento, a Eucaristia recolhe e plenifica a vida toda de Jesus culminada no evento de sua paixão, morte e ressurreição. O binômio semita – corpo entregue e sangue derramado – traduz a doação plena de Jesus no curso de sua vida e selada com sua morte de cruz. Plenificando sua “existência sacrificial”, Jesus se oferece “uma vez por todas” (Hb 7,27; 9,12; 10,10) como expressão de fidelidade irrestrita ao Pai e de inequívoca solidariedade às criaturas todas, seus irmãos e irmãs.

A compreensão da eucaristia como memorial tem sua origem no mandato de Jesus: “Fazei isto em memória de mim” (1Cor 11,24.25; Lc 22,19). Na perspectiva bíblica, o “memorial” propicia a experiência de contemporaneidade entre a comunidade celebrante, aqui e agora, e o evento histórico-salvífico celebrado. Trata-se de uma participação simbólico-sacramental e, portanto, real. O memorial abraça o tempo em sua tríplice dimensão: passado, presente e futuro. E o faz na medida em que a memória do passado se atualiza no presente e ambos, passado e presente, são compreendidos escatologicamente, isto é, enquanto atraídos pelo futuro quando, então, serão plenamente realizadas todas as promessas.

A Eucaristia se transforma em epiclese (invocação) segundo uma necessidade intrínseca, a saber: enquanto memorial do testamento de Jesus. É o Espírito Santo quem cria as condições para que o gesto de doação e solidariedade extremas de Jesus, realizado uma vez por todas, naquelas circunstâncias históricas bem concretas, possa ser recriado no seio das comunidades cristãs em cada época e em todos os tempos. Esse é precisamente o sentido das duas invocações ao Espírito Santo presentes em nossas orações eucarísticas: sobre as oferendas e sobre a comunidade celebrante. Essa dupla epiclese explicita a íntima relação entre Eucaristia e Igreja. Na Eucaristia, a Igreja celebra aquilo que, de fato, é chamada a ser: sacramento – sinal e instrumento – de salvação. O empenho em constituir “um só corpo e um só espírito” ou “um só coração e uma só alma”, a exemplo de Cristo e em comunhão com Ele, transformará nossa própria vida em oferenda agradável a Deus (cf. Rm 12,1).

No intuito de resgatar a conexão íntima entre Eucaristia e vida cotidiana, deparamo-nos com questões que não querem calar: Como celebrar a Eucaristia – ágape fraterno – vivendo no Brasil, país onde mais da metade da população padece de fome crônica? Como celebrar a Eucaristia – sacramento de comunhão – em meio a situações de injustiça, exclusão, discriminação, violência e morte? Torna-se urgente, portanto, recuperar a dimensão ética e social da Eucaristia. Nesse particular, convém recordar que celebração eucarística e missão se encontram estreitamente unidas. Prova disso é o fato de se empregar o termo “missa” para nomear a celebração eucarística. Missa vem de missão e se refere às palavras, em latim, com as quais o presidente concluía a celebração: “Ite missa est”. Entre celebração eucarística e missão – testemunho de vida, empenho em encarnar os valores do Evangelho – vigora, portanto, uma circularidade ininterrupta. Convém ter presente a esse propósito as contundentes palavras de São João Crisóstomo: “Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm com que vestir, nem O honres aqui no templo com vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez. Aquele que disse: ‘Isto é o meu Corpo’, […] também afirmou: ‘Vistes-Me com fome e não me destes de comer’, e ainda: ‘Na medida em que o recusastes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o recusastes’. […] De que serviria, afinal, adornar a mesa de Cristo com vasos de ouro, se Ele morre de fome na pessoa dos pobres? Primeiro dá de comer a quem tem fome, e depois ornamenta a sua mesa com o que sobra” (Homilias sobre o Evangelho de Mateus).

A intrínseca relação entre eucaristia e encarnação é o que nos permite falar, enfim, de sua dimensão cósmica. Pois, de fato, o mistério da encarnação desvela a dimensão intrinsecamente crística da inteira criação. Segundo o testemunho das Escrituras sagradas, Cristo é Aquele pelo qual todas as coisas foram criadas e, ainda, Aquele mediante o qual todas as coisas retornam ao Pai, princípio e fim da criação. A relação de Jesus Cristo com a criação toda é, portanto, dupla: Ele é, por um lado, o primogênito de toda criatura e, por outro, síntese e recapitulação da inteira realidade criada. A dimensão cósmica da Eucaristia nos remete, portanto, ao gesto solidário de Jesus de reconhecer cada criatura e as criaturas todas como membros de seu próprio corpo. Nada escapa à presença de Deus que, no seu Filho Jesus Cristo, penetra a inteira realidade criada, fomentando a singularidade de cada criatura. Também aqui caberia a pergunta: como celebrar a Eucaristia, em um mundo caracterizado por atitudes antropocêntricas selvagens que reduzem as demais criaturas a meros recursos disponíveis?

Para concluir recorremos às sugestivas palavras do teólogo e educador brasileiro Rubem Alves: “Por isso me alegrei com esta festa de nome Latino, Corpus Christi, em que a cristandade comemora, teimosa e inconsciente, o corpo de Cristo. Fosse a celebração da sua alma, confesso que fugiria. Mas este dia, Corpus Christi, a se acreditar na tradição, diz que Deus, cansado de ser espírito, descobriu que o bom mesmo era ter corpo, e até se encarnou, segundo o testemunho do apóstolo. Preferiu nascer como corpo, a despeito de todos os riscos, inclusive o de morrer. Porque as alegrias compensavam. E nasceu, declarando que o corpo está eternamente destinado a uma dignidade divina. Curioso que os homens prefiram os céus, quando Deus prefere a Terra. Corpus Christi: divino é o pão e toda a terra onde cresceu, com a água que o fez germinar, e o vento que o acariciou, e o fogo que o cozeu. Divino é o vinho, alegria pura que dá asas ao corpo e o faz flutuar. Coisas do corpo: dentro dele cabe o Universo. Não é à toa que a tradição fala não em imortalidade da alma, mas em ressurreição do corpo. Afirmação de que a vida é bela e o divino se encontra nas coisas materiais mais simples. Como dizia Blake: ‘Ver um mundo num grão de areia’. Ou Fernando Pessoa: ‘Toda matéria é espírito’. E assim, como e bebo as coisas deste mundo, corpo de Deus…”.

 

Frei Sinivaldo Silva Tavares, OFM é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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