Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM
Dentre as várias manifestações populares, cujas imagens deram a volta ao mundo, uma, em particular, chamou-me a atenção. Por ocasião do féretro do nosso querido Papa Francisco, ao longo dos oito quilômetros que interligam a Basílica de São Pedro, no Vaticano, e a Basílica de Santa Maria Maior, no coração da Cidade eterna, meus olhos se detiveram na faixa pendurada em um edifício, cuja inscrição, em letras garrafais, dizia o seguinte: “Francisco: um papa demasiadamente humano”.
Confesso que esta frase singela e, ao mesmo tempo, reveladora, ocupou-me durante um bom tempo. De imediato, pensei cá com meus botões que esse talvez fosse o reconhecimento mais nobre e generoso dirigido a alguém, no ocaso de sua vida. E, a partir daí, como em um filme, começaram a se desenrolar em minha mente imagens, gestos e palavras “demasiadamente humanos” do querido Papa Francisco.
De início, me vieram à mente aqueles gestos que caracterizaram a primeira aparição pública do papa recém-eleito. Na sacada da Basílica de São Pedro, Francisco nos surpreendeu com gestos de simplicidade, despojamento e delicadeza: o modo de se vestir, as palavras de saudação ao povo na Piazza San Pietro, o fato de ter se inclinado diante do povo, pedindo-lhe que o abençoasse no início de seu novo ministério, entre outros. E as palavras proferidas a elucidar o sentido desses gestos: apresentou-se como alguém chamado “desde o fim do mundo para ser bispo de Roma”; dirigindo-se a seu povo fez referência ao caminho a ser percorrido juntos, pastor e rebanho. E, por essa razão, se inclinou diante de seu rebanho pedindo a bênção, antes da bênção solene a ser concedida na condição de bispo recém-eleito. Gestos de extrema delicadeza e de respeito, imbuídos de uma genuína eclesiologia recuperada e proposta pelo Concílio Vaticano II. Aliás, a própria escolha do nome Francisco foi uma opção que exprimia o projeto de seu pontificado: restaurar a Igreja que se encontrava em ruínas, a exemplo de outro Francisco, o poverello de Assis. Com efeito, dias antes, a foto de um raio incidindo sobre a cúpula da Basílica de São Pedro correu o mundo a exprimir plasticamente a situação da Igreja no apagar das luzes do pontificado de Bento XVI.
E, a partir daí, fomos sendo surpreendidos, dia após dia, por inúmeros outros gestos, singelos muitas vezes, mas carregados de sentido, como, por exemplo, o fato de, após ter sido eleito, voltar no mesmo veículo que transportava os cardeais eleitores; a renúncia aos sapatos vermelhos e a tantos outros detalhes da indumentária papal, recuperados por seu antecessor; a decisão de utilizar automóveis utilitários para deslocamentos em suas viagens apostólicas; a intenção explícita de visitar pessoas em situações de marginalização e pobreza seja em Roma seja em outras localidades por ele visitadas; a escolha de pessoas em situação de pobreza e exclusão para participarem das celebrações do lava-pés na quinta-feira santa. Digna de destaque a visita a Lampeduza como expressão de sua solidariedade a milhares de migrantes clandestinos que perderam a própria vida na travessia de um mar que os separava de outro mundo, considerado paradisíaco. E tantos outros gestos; impossível enumerá-los todos!
Também o recurso a metáforas, revelou-nos um papa “demasiadamente humano” com um forte desejo de se aproximar das pessoas. Essas metáforas empregadas por Francisco e difundidas entre nós foram eficazes no sentido de ilustrar a mensagem que ele intencionava transmitir. São inúmeras as metáforas às quais recorria Francisco em seu afã de dar concretude à ação evangelizadora da Igreja. Impossível recuperá-las todas. Trazemos, aqui, apenas as mais significativas ou aquelas que mais efeito provocaram no imaginário eclesial e global. A vantagem das imagens é não serem apreendidas apenas por católicos praticantes, mas também por aqueles que se encontram fora de nossos espaços convencionalmente religiosos. São os Mass media que logo as captam e as difundem. Enquanto os discursos, quase sempre, pressupõem um conhecimento prévio, ainda que mínimo, da doutrina e teologia cristãs, as imagens falam diretamente à sensibilidade e ao senso comum. E tocam precisamente por sua plasticidade. Quem não se recorda, por exemplo, das sugestivas metáforas: “igreja em saída”; “igreja como hospital de campanha”; “igreja como mãe misericordiosa e não como alfândega; “prefiro uma igreja enlameada que doente dentro das sacristias”; “pastores e teólogos com cheiro de ovelha”; “o decálogo das doenças espirituais que acometiam os membros da Cúria romana”?
Prosseguindo em minha rememoração, três aspectos da personalidade “demasiadamente humana” de Francisco afloraram: lucidez crítica, esperança a toda prova e extrema liberdade. Francisco manifestava grande lucidez ao discernir as questões candentes de nosso tempo, indo às raízes últimas dos fenômenos e situações. Propunha análises críticas contundentes, não se satisfazendo com leituras rasas que detectam apenas sintomas nem com soluções parciais que não atingem as estruturas mais profundas dos fenômenos analisados. Jamais sucumbiu, no entanto, à gravidade e urgência dos problemas analisados assumindo posturas trágicas e pessimistas. Conduzia-nos às fontes da esperança humana e cristã, para daí extrair a seiva capaz de sustentar-nos no embate quotidiano. É raro que essas duas atitudes convivam de maneira equilibrada e harmoniosa em uma mesma pessoa. Na maioria das vezes, a presença de uma delas termina por afugentar a outra, criando uma situação de exclusão recíproca. Em seus escritos magisteriais, Francisco encarnava a rara combinação de textos extremamente críticos com relação à presente situação com textos de bela poesia, reveladores de uma alma profundamente contemplativa. Seu discurso contagiava-nos com inveterada esperança ao despertar-nos para a beleza da vida e para a inalienável dignidade de cada criatura e ao trazer-nos à memória a alegria do Evangelho e dos mistérios da fé cristã.
Contudo, a atitude do papa que mais me impressionava era sua extrema liberdade. Seu ensinamento e suas atitudes pastorais chegaram a incomodar setores da igreja. Seu pontificado se caracterizava, entre outras coisas, pela ousadia em formular questões, fomentar discussões e incentivar o diálogo. E tudo isso incomodava sobretudo aqueles setores mais reacionários, posto serem pouco afeitos a tais processos. Era, pois, com extrema liberdade que Francisco acolhia resistências e críticas públicas à sua pessoa e missão. Segundo minha percepção, o papa discernia com cuidado e delicadeza as questões que lhe eram postas, com base em critérios que julgava apropriados, e prosseguia seu caminho na fidelidade à missão petrina que lhe foi confiada sem se deixar condicionar seja por críticos seja por admiradores.
Voltou bem forte em minha mente a presença e as contundentes palavras de Francisco nos vários encontros, promovidos por ele, com os movimentos populares. Por meio de sua presença e de seus discursos, em tais eventos, nos interpelava a não esperar nada de cima, uma vez que de lá, segundo ele, não poderá vir nada de novo ou de alternativo ao que está posto. Ele insistia que, de cima, só poderá vir mais do mesmo e talvez algo ainda pior. E é sobretudo por tais razões que o papa amava denominar os membros desses movimentos de “poetas e poetisas sociais”, por serem eles os artesãos e artesãs de novas relações que deverão pautar a convivência harmoniosa augurada e proposta com insistência por Ele.
Ao longo desse percurso imagético, foi se confirmando em mim a propriedade daquela frase exposta no intuito de homenagear o Papa Francisco. De fato, não havia como negar essa dimensão “demasiadamente humana” de alguém que viveu entre nós revelando sensibilidade ímpar e heroica disposição a criar pontes e a promover a cultura do encontro e do diálogo. Lembrei-me que, na Fratelli tutti, Francisco propunha o diálogo como uma complexidade composta por sete verbos sinônimos: aproximar-se; expressar-se; escutar-se; olhar-se; conhecer-se; tentar se compreender; procurar pontos de contato. Ele, de fato, concebia o diálogo como uma verdadeira composição artesanal, tecida ponto por ponto com grande sabedoria e cuidado.
Confesso, enfim, que, reconhecendo as atitudes “demasiadamente humanas” de Francisco, no decorrer de seu pontificado, compreendo mais profundamente em que consiste a santidade evangélica. Afinal, não nos consideramos discípulos daquele Mestre galileu que foi reconhecido, desde o primeiro momento, como alguém “tão humano que só podia ser Deus”?
Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
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