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Ícones de um país mestiço: o que nos dizem Aparecida e Nazaré?

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Geraldo De Mori, SJ

“Eis aqui a serva do Senhor” (Lc 1,38)

O mundo católico do Brasil celebra nestes dias duas figuras emblemáticas da experiência religiosa nacional: Nossa Senhora Aparecida, a imagem da virgem negra encontrada no fundo do rio Paraíba, no interior de São Paulo; Nossa Senhora de Nazaré, imagem que remete a uma devoção similar trazida de Portugal, mas que encontrou em Belém do Pará e em todas as Igrejas daquela região uma expressão única, que faz das procissões em torno dela as maiores do mundo, segundo estudiosos do mundo religioso.

É interessante, ao olhar para essas duas imagens, recordar o que elas expressam da alma de um povo. Certamente, o Brasil conhece um pluralismo cada vez maior no âmbito social, cultural e religioso. Mesmo sem ter saído o resultado do último censo, algumas prévias feitas por institutos de pesquisa já apontam para a redução drástica dos que se declaram católicos, o crescimento ainda exponencial do mundo evangélico e dos “sem religião”. Essas mudanças profundas no campo religioso nacional não apagam, porém, o passado e o que nele foi gestado e vivido no âmbito da fé e da religião. Apesar de muitos equívocos das diferentes vagas de evangelização nas diversas partes do país, a figura de Maria, identificada como “estrela da evangelização” por vários papas, foi determinante na formação do imaginário católico brasileiro. Além das muitas imagens a partir das quais foi venerada nos primeiros séculos do processo evangelizador, as que representam grande parte da “devoção” da maioria dos brasileiros nos dias atuais, como são as de Aparecida e Nazaré, são, sem dúvida, icônicas do que é a identidade nacional.

O Brasil comemorou, em 2022, duzentos anos de sua independência e cem anos da Semana de Arte Moderna. As duas comemorações remetem certamente a um evento político, como no caso do 7 de setembro de 1822, no qual o país se tornou independente de Portugal, e a um evento cultural, como no caso da semana de fevereiro de 1922, na qual vários artistas organizaram uma semana bastante eclética e transgressora dos modelos culturais vigentes. Mas elas foram igualmente um convite a revisitar a pergunta sobre a identidade nacional, que, sob muitos pontos de vista, se encontram nos dois ícones a partir dos quais se reúnem milhões de brasileiros/as neste mês de outubro. Como se explica o poder agregador desses dois ícones da religiosidade católica nacional?

Numa de suas passagens ao Brasil na década de 1970, Michel de Certeau, jesuíta francês que havia dedicado muito tempo ao estudo dos fenômenos místicos e que, então, se interessava pela cultura popular, num seminário do qual participou com teólogos e pastoralistas em Recife e João Pessoa, evocava o poder da religiosidade popular em termos de “poder dos fracos”. É interessante essa reflexão pois ela mostra que esse lugar no qual foi se gestando essas duas expressões da religiosidade nacional é um espaço no qual se revela o “poder dos fracos”. De fato, a devoção ao redor de uma figura feminina como a de Maria, que nos seus inícios arrebanhou ao redor de si grupos da sociedade tidos como “fracos”, como eram os negros e pobres do vale do Paraíba e as populações mestiças de origem indígena, no caso de Belém do Pará, aponta para essa força dos fracos. E a fraqueza, como ela canta no Magnificat, é o lugar da elevação dos humildes.

Que fraqueza e que força se expressam nas duas imagens veneradas em Belém e Aparecida? A maternidade, com tudo o que ela representa, é ao mesmo tempo fraqueza e força na vida da maioria das mulheres. Fraqueza porque acompanhada de todas as angústias que são constitutivas do processo de gestação, nascimento e educação dos filhos, que pode culminar, em muitos casos, em opções e decisões que trazem muita dor para quem é mãe. Força porque o poder de gerar e dar à luz uma nova vida, além de transformá-la em vida humana, é provavelmente o maior dos poderes no mundo da vida. Ao se identificarem com Maria, muitos fiéis experimentam-na como aquela que tem não só o poder de dar e gerar vida, mas também de suportar os reveses da vida, e os mais duros, pois certamente não existe nada mais difícil do que a ameaça da perda daquele em cujo seio foi gerado. De muitas maneiras, as duas experiências se encontram na identificação dos devotos dessas duas imagens extraordinárias da mãe de Jesus no Brasil.

Além dessa fraqueza-força constitutiva da figura materna encarnada por Maria, que certamente é lugar de identificação de grande parte de seus devotos/as no Norte do país, no caso de Nossa Senhora de Nazaré, e no conjunto do país, no caso de Nossa Senhora Aparecida, acrescentam-se os “lugares” e expressões de sua descoberta, o fundo de um rio e o meio de um bosque. Pescadores pobres, no caso da imagem “pescada” no fundo do Paraíba, e habitantes também simples, no caso da imagem de Nazaré, que preferia o bosque ao lugar que lhe haviam dedicado. No caso de Aparecida, a identificação com a pele negra da população que então era a maioria do país, que de muitas maneiras experimentou e experimenta a ausência de liberdade, a exploração de seu trabalho e as inúmeras formas de exclusão e racismo, de novo é a fraqueza que leva a recorrer aos “braços maternos” que acolhem, afagam, reconhecem, dão lugar e vez. No caso de Nazaré, muitas expressões do mundo indígena são presentes na devoção, mostrando mais uma vez que é da fraqueza que nasce uma força impressionante que permite enfrentar todos os revezes da existência, tornando-a mais digna de ser vivida.

O “manto protetor”, sob o qual tantos fiéis querem colocar-se, ou a “corda” que arrasta pelas ruas de Belém a imagem sagrada, na qual todos querem tocar, identificados pelas mentes ilustradas como “magia”, são experimentados por todos os devotos/as como lugares a partir dos quais toda a fraqueza é fortalecida, ou, como ainda é cantado pela Mãe de Jesus no Magnificat, “ele derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes, despediu o rico de mãos vazias e encheu de bens os famintos”. Existencialmente, os fiéis devotos de Aparecida ou de Nazaré vivenciam, de alguma maneira e de forma simbólica, com todo o realismo que os símbolos religiosos verdadeiros encarnam, o que a “Mãe” vivenciou em sua existência humilde em Nazaré, Belém e Jerusalém, ou seja, a vida dos humildes e pequenos, que de muitas maneiras buscam, através de muitas pequenas estratégias do cotidiano, sobreviver com dignidade.

Como cantam alguns fiéis peregrinos, “Eu canto louvando Maria, minha mãe, a ela um eterno obrigado eu direi, Maria foi quem me ensinou a viver, Maria foi quem me ensinou a sofrer”. Oxalá as festas de Aparecida e Nazaré continuem alimentando a força de existir e de lutar no cotidiano dos muitos fiéis que a elas recorrem mais uma vez neste ano de 2023, dando-lhes a mesma força que a mãe de Jesus teve para vencer a fraqueza.

 

Geraldo Luiz De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

 

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