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Início, reinício, origem

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Marília Murta de Almeida

Vemos na atualidade uma ênfase na capacidade humana de se fazer, por meio da expressão infinitamente repetida da necessidade de nos reinventarmos. Reinventar-se parece ser a senha que indica a possibilidade humana de se fazer a partir de uma espécie de ponto zero que seria o início de uma nova maneira de ser. Diante de dificuldades, nos reinventemos para ultrapassá-las. O imaginário computacional em que vivemos nos oferece a imagem do reiniciar para resolver problemas que às vezes nem sabemos quais são. Muitas vezes quando o computador, o celular ou a televisão inteligente não estão respondendo bem, acionamos o comando reiniciar e o problema se resolve.

Entretanto, a figura de um possível reinício encontra muitas imagens no imaginário humano, desde muito antes de nossa era eletrônica. Ficando apenas no âmbito restrito da cultura brasileira das últimas décadas, vejamos dois exemplos. A canção Estaca Zero, lançada nos anos 1970 pelo cearense Ednardo, se referindo às veredas de caminho por onde andamos, diz assim:

Mas faz de conta que sabe

Que tem um canto da estrada

Chamado estaca zero

Onde a gente pode dizer

O rumo que quer tomar

 

A imagem da uma possível estaca zero sempre me inquietou. Haveria mesmo este canto da estrada? Clarice Lispector, em seu A maçã no Escuro, radicaliza essa experiência na jornada do protagonista Martim, um homem que comete um crime, foge e tem a pretensão de (re)criar a si mesmo e ao mundo. O romance tem um tom mítico e grandiloquente em que a possibilidade humana de criar a si mesmo atinge o paroxismo da pretensa Criação de tudo o que existe através de um início absoluto experimentado pelo personagem em sua própria trajetória. Esse início é simbolizado pela imagem do domingo que nos remete imediatamente ao relato bíblico da criação no primeiro capítulo do Gênesis, quando o ato criativo divino é realizado em sete dias, criando para nós o modelo da semana composta de sete dias iniciados pelo domingo. Leiamos:

Como um homem que fecha a porta e sai, e é domingo. Além do mais, domingo era o primeiro dia de um homem. Nem a mulher fora criada. Domingo era o descampado de um homem. E a sede, libertando-o, dava-lhe um poder de escolha que o inebriou: hoje é domingo! determinou categórico.

A ironia é marca constante da literatura de Clarice Lispector e não está ausente dessa passagem. A sede, marca do estado de privação em que está Martim, o liberta – pois a pessoa sem nada experimenta uma liberdade – e dá a ele o poder de escolha que o faz determinar categórico o dia vivido: hoje é domingo, o dia em que nem há ainda a diferença criada com a mulher. Martim, idêntico a si mesmo, como só Deus pode ser, vivia o seu domingo, o momento exato em que se sentia pronto a se criar a partir de si mesmo ou de escolher o rumo a tomar, nos valendo aqui do vocabulário da canção de Ednardo, que também contém a ironia do faz de conta. Fazemos de conta que podemos determinar o (re)início de nossas próprias vidas a partir de um domingo inventado por nós mesmos.

O primeiro dia do resto de nossas vidas é mais uma imagem comum para essa ideia que nos é tão cara. A ironia expressa por Clarice e Ednardo nos indica com sutileza a impossibilidade de nos criarmos a partir de um ponto zero. Não há para a pessoa humana a possibilidade de viver em si mesma um início absoluto, pois que é já um ser existente. Para quem assim o crê, é já um ser criado.

A pessoa, coisa já criada antes de descobrir em si a capacidade criativa, tem necessariamente fora de si a origem de si mesma. Biologicamente, historicamente, psiquicamente, espiritualmente, em qualquer dimensão da existência que consideremos, não somos a fonte de nós mesmos. Sempre frutos de antepassados, sejam pessoais ou coletivos, somos continuadores de nós mesmos. Só podemos continuar, seguir com o que já encontramos em nós e no mundo.

O disparate é que a potência criativa que encontramos em nós – e que também tem origem estranha a nós mesmos – permanece nos inspirando a imagem do possível reinício. A esperança da renovação, da vida nova a ser inaugurada, do uso mais potente da liberdade, do incremento de nosso poder de nos fazermos não desparece após a constatação de sermos fruto da alteridade que nos escapa.

A realização de si passa necessariamente por esse movimento autocriador que nos pede a experiência de nosso domingo que, embora não possa jamais ser o primeiro dia do Gênesis, faz parte do nosso caminho. É provável que, para cada um de nós, diferentemente de como foi para Martim, o personagem mítico que nos revela o domingo, só possamos reconhecer nosso domingo depois da caminhada. Lá de longe, de um ponto qualquer de uma vereda, olhamos para trás e vemos o domingo e nosso ato fundante de escolher o rumo a tomar.

No núcleo desse ato, temos a chance de reconhecer o desejo que nos guia e que também não tem origem em nós mesmos.

 

Marília Murta de Almeida é professora no departamento de Filosofia da FAJE

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