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Lavar as mãos como Pilatos: um pecado recorrente!

Jaldemir Vitório, SJ

A Semana Santa coloca em destaque uma série de personagens, em torno da paixão e morte de Jesus de Nazaré. Judas Iscariotes, o traidor, parece ocupar o primeiro lugar. Com ele, Pedro, o discípulo que nega o Mestre três vezes; Simão Cireneu, forçado a ajudar Jesus a carregar a cruz; Verônica, que lhe enxuga o rosto ensanguentado, cuja figura fica impressa na toalha; os soldados romanos, encarregados de crucificar Jesus, e o fazem com toda brutalidade.

Dentre tantos, um me chama a atenção: Pôncio Pilatos, a autoridade romana na Palestina no tempo de Jesus. Seu gesto de lavar as mãos, narrado no evangelho de Mateus (Mt 27,24), perpetua-se em nossos dias, com a mesma omissão irresponsável de outrora. Qual o contexto e o simbolismo dessa lavagem de mãos, que a tornam paradigma de um modo de proceder banalizado, sempre, digno de censura?

A catequese mateana está toda perpassada com o conflito entre Jesus e seus adversários, mormente, os escribas e os fariseus, um grupo apegado, de forma exagerada, à Lei mosaica. Em Mt 12,14, os fariseus tomam a decisão de eliminá-lo. Daí em diante, a narração evangélica caminhará na direção da morte de Jesus, a mais terrível de todas, a morte de cruz. Certa ocasião em que Jesus foi a Jerusalém para celebrar a Páscoa, deu-se conta de que o cerco contra ele estava se fechando. Profundamente desolado, retirou-se no Jardim das Oliveiras com os discípulos para rezar. O discípulo traidor, Judas Iscariotes, cuidou de entregá-lo a quem interessava condená-lo, ou seja, as autoridades religiosas. Julgado pelo Sinédrio, tribunal religioso presidido pelo sumo-sacerdote, recebeu a sentença de morte com base em falsos testemunhos, a que chamaríamos hoje de fakenews. O argumento decisivo foi que Jesus teria dito ser capaz de destruir o Templo e reerguê-lo em três dias. Bastou para ser acusado de blasfêmia, receber cusparadas no rosto e ser submetido a torturas.

Por se tratar de pena de morte, a decisão do tribunal religioso dependia do aval do tribunal romano. Aqui entra Pilatos, a quem Jesus foi apresentado, tendo as mãos amarradas, como se fora um perigoso marginal. A acusação, agora, tinha uma impostação política: Jesus pretendia ser rei dos judeus! Uma acusação, evidentemente, falsa. Outra fakenews! Afinal, a autoridade romana tinha seus informantes e qualquer tentativa de rebelião seria, de pronto, descoberta e desbaratada. Por outro lado, onde estava o exército daquele galileu pobre, que não dava mostras de ser violento e se comportava de maneira digna, às vezes, se recusando a rebater os acusadores? Com certeza, Pilatos sabia tratar-se de questiúnculas entre as lideranças religiosas judaicas, com as quais não valia

perder tempo. Todavia, mostrou não ter pulso firme para pôr um fim naquela encenação macabra.

A catequese mateana comporta um detalhe, ausente nas demais catequeses evangélicas. Quando Pilatos estava sentado no tribunal, em pleno julgamento de Jesus, sua mulher mandou dizer-lhe que não se envolvesse com aquele “justo”, a respeito de quem fora terrivelmente perturbada durante o sono. A concepção da época entendia os sonhos como forma de comunicação das divindades com os seres humanos. Por conseguinte, os próprios deuses (Pilatos não era judeu!) tomavam o partido daquele réu. Até mesmo uma pagã tinha clareza disso! Pilatos deveria, pois, tomar o parâmetro divino para sua decisão. A sequência dos fatos mostra que a autoridade romana se fez de surda, em face dos apelos dos deuses.

O inseguro Pilatos submete sua decisão à turba ensandecida, incapaz de refletir com sensatez: “que farei com Jesus, que é chamado o Cristo?” Sem delongas, gritaram: “seja crucificado!” Pilatos tem consciência do que significa condenar alguém à morte de cruz, reservada aos bandidos e marginais, jamais aos cidadãos romanos. E pede motivo aos acusadores: “que mal ele fez?” De novo insistem: “seja crucificado!” Temeroso de uma revolta popular, Pilatos capitula e se deixa levar pela insanidade da multidão, apesar de saber, muito bem, como debelar um motim com suas tropas treinadas e apetrechadas para conter rebeliões.

Então, realiza o gesto que o fará ser conhecido e o tornará símbolo de quem se omite de assumir a responsabilidade de fazer valer a justiça: “mandou trazer água, lavou as mãos diante da multidão, e disse: ‘eu não sou responsável pelo sangue deste homem. A responsabilidade é de vocês!’” Assim, o inocente foi condenado à morte mais infame, pela inércia de quem tinha nas mãos o poder e a responsabilidade de garantir um julgamento correto para Jesus.

Como Pilatos, tantos continuam a lavar as mãos, renunciando ao seu dever, quando confrontados com a injustiça perpetrada, de modo especial, contra os mais fracos e indefesos. São pessoas de todas as categorias que, estando em condições de interferir em favor dos injustiçados, optam por deixar o barco correr. Políticos, juízes, religiosos, profissionais, acadêmicos e tantos outros revestidos de autoridade, por receio de “queimar-se” ou por puro desinteresse, veem-se diante da injustiça e fazem vistas grossas, de forma velada ou patente, como se lavassem as mãos como o Pilatos de antigamente. Quantos poderiam intervir em favor dos migrantes e refugiados, explorados pelo trabalho escravo? Quantos têm condições de tomar o partido dos indígenas, cujas terras são invadidas por grileiros inescrupulosos e pelo garimpo ilegal? Quantos têm a responsabilidade de se colocar a favor das vítimas do tráfico humano, reduzidas a meros objetos de compra e venda? Quantos têm a obrigação de tomar a defesa

das minorias (que, às vezes, são maioria!) e nada fazem, numa postura de aberta negligência?

Os Pilatos de hoje têm nomes como o Pilatos da paixão. Muitos se dizem cristãos, embora continuem a submeter Jesus de Nazaré aos mesmos constrangimentos do passado, sem atinar para a intrínseca relação entre a fé e luta pela justiça. “Tudo quanto vocês não fizeram a um desses meus irmãos mais pequeninos, vocês não o fizeram a mim” (Mt 25,45). O Mestre, claramente, se identificou com os mais pobres e necessitados de solidariedade e de cuidado.

Há dez anos, em face da morte de migrantes aos milhares no mar Mediterrâneo, o Papa Francisco, numa homilia na ilha italiana de Lampedusa, no início do seu pontificado, fustigou tantas consciências tranquilas com palavras fortes. “Hoje assoma intensamente esta pergunta: quem é o responsável pelo sangue destes irmãos e irmãs? Ninguém! Todos nós respondemos assim: não sou eu, não tenho nada a ver com isso; serão outros, eu não certamente. […] Hoje ninguém no mundo se sente responsável por isso; perdemos o sentido da responsabilidade fraterna. […] Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa”!

Será que a indiferença está fazendo Pilatos renascer em nós, incapazes de tomar a defesa dos fracos e dos que, como Jesus de Nazaré, são condenados a morrer na cruz, com seus muitos toques de crueldade?

Jaldemir Vitório, SJ é professor, pesquisador e diretor do departamento de Teologia da FAJE

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