Geraldo De Mori, SJ
“… era estrangeiro, e hospedastes-me” (Mt 25,35).
Entre os dias 22 e23 de setembro de 2023, o Papa Francisco realizou uma viagem a Marselha, França, para participar dos “Encontros Mediterrâneos”, ocasião na qual fez dois discursos importantes, um no momento de recolhimento com líderes religiosos, no dia 22, outro na Sessão Conclusiva do evento. A esses discursos há que acrescentar ainda a homilia da missa celebrada no dia 23. Embora o conteúdo de suas falas seja situado, pois trata de questões que dizem respeito aos países da bacia mediterrânea, seu significado é mais amplo, pois convida mais uma vez ao olhar hospitaleiro para com refugiados e migrantes, cujo dia a eles dedicado (24/09) quase que coincidiu com a visita.
É digna de nota, pela força da imagem e o teor da reflexão, a homilia proposta ao redor do texto da festa da Visitação: o do encontro entre Maria e Isabel, narrado no evangelho de Lucas. Segundo Francisco, as duas mulheres “estão grávidas de modo “impossível”, e é essa a obra que Deus quer realizar na vida de cada um/a, ou seja, “tornar possível mesmo aquilo que parece impossível”. Isso se dá na vida de quem crê, pois leva ao “salto da alegria na fé”, pois a fé gera “um salto de alegria perante a vida”. Mas esse salto perante a vida é também um salto “de alegria à vista do próximo”. Deus, continua o Papa, “é relação e visita-nos muitas vezes através dos encontros humanos, quando sabemos abrir-nos ao outro, quando há um salto de alegria pela vida de quem passa diariamente por nós e quando nosso coração não fica impassível e insensível perante as feridas de quem é mais frágil”. A esse duplo salto ele convida os franceses, salto que leva ao reencontro da paixão e do entusiasmo, à redescoberta do gosto do compromisso pela fraternidade, à ousadia do risco do amor nas famílias e com os mais frágeis e ao encontro no Evangelho de uma “graça que transforma e torna bela a vida”.
No discurso da Sessão Conclusiva dos “Encontros Mediterrâneos”, Francisco propõe uma reflexão ao redor de três imagens: o mar, o porto e o farol. A imagem do mar, também presente no discurso feito por ele para o momento de recolhimento com os líderes religiosos, é uma espécie de reverberação ao “grito” que lançou na homilia do dia 08/07/2013, em Lampedusa, que começava justamente com as palavras “Emigrantes mortos no mar”. Desde então, sua voz em defesa dos imigrantes e refugiados não cessa de ecoar, encontrando em muitos lugares ouvidos surdos ou indiferentes, que, no caso dessa região que une Europa, África e Ásia, transformam o Mediterrâneo de “mare nostrum” em “mare mortuum”, deixando de ser visto como “berço de civilização” para se tornar “túmulo da dignidade”. Como os profetas de outrora, que recorriam a palavras duras para chamar à conversão, o Pontífice também recorre a palavras duras em seu discurso. De fato, como ele insiste, o mar, que é fonte de vida, tornou-se sinônimo de naufrágio, morte e cemitério, sendo evocado em termos de “números” dos que pereceram, o que leva ao esquecimento de que, mais do que números, ele deve lembrar nomes e sobrenomes, “rostos e histórias”, “vidas despedaçadas e sonhos desfeitos”. O “mare nostrum” “clama por justiça, com as suas margens que de um lado transudam opulência, consumismo e desperdício, enquanto do outro há pobreza e precariedade”.
A segunda imagem, a do porto, aparece apenas no discurso da Sessão Conclusiva. Ela se refere inicialmente a Marselha, “porta aberta para o mar” para a França e para a Europa, mas também porta de saída, pela qual muitos saíram em busca de um futuro no estrangeiro. No entanto, recorda Francisco, muitos portos se fecharam no Mediterrâneo, pois pensam que essas portas dão lugar a “invasão” e “emergência”. Quem arrisca a vida no mar, continua o Papa, não invade, “procura acolhimento, procura vida”. Na verdade, o Mediterrâneo é o espelho do mundo, com o Sul, no qual se situam países “em vias de desenvolvimento, atribulados por instabilidade, regimes, guerras e desertificação”, que faz “apelo ao Norte”, no qual vivem países “que estão bem”. O Papa recorda que o apelo do Sul ao Norte não é novo, pois já depois do Concílio Vaticano II Paulo VI, na Encíclica Populorum progressio, lembrava o dever da solidariedade das nações ricas para com as que estavam em via de desenvolvimento, que se traduzia no dever de acolhimento. Os imigrantes, continua Francisco, devem ser “acolhidos, protegidos ou acompanhados, promovidos e integrados”. Além desse dever de hospitalidade, a imagem do porto recorda também a Igreja como “porta da fé” para quem nela deseja entrar e conhecer Aquele que é a Vida, mas também para repousar, reencontrar ânimo e partir novamente.
A imagem do farol lembra sua função de iluminar o mar e indicar o porto. Com relação à primeira função, o Papa se pergunta sobre os “rasgos luminosos que podem orientar as Igrejas do Mediterrâneo”, evocando uma possível Conferência Eclesial, que permita novas experiências de intercâmbio e maior representatividade eclesial à região. Com relação ao porto, a função do farol pode ser a de uma pastoral migratória mais conectada entre as Igrejas locais. Ele associa ainda o farol aos jovens, luz que indica a rota futura. O Papa recorda o fato de Marselha possuir grande população universitária, o que a torna um laboratório de sonhos e um estaleiro de construção de futuro, onde os “jovens amadureçam encontrando-se, conhecendo-se e descobrindo culturas e contextos simultaneamente vizinhos e diversos”. Dessa forma, afirma Francisco, se abatem os preconceitos, se curam as feridas e se evitam as retóricas fundamentalistas.
As imagens do mar, do porto e do farol são importantes para quem mora numa cidade portuária e, no caso de Marselha, marcada pelo grande fluxo de imigrantes vindos da África e da Ásia, com os dramas que o problema migratório traz, não só na Europa, mas também em muitos outros contextos. Essa questão, que pode parecer distante da realidade brasileira, é, na verdade, constitutiva da história do país. De fato, a sociedade brasileira foi constituída por várias vagas migratórias, como a de europeus e africanos, na época colonial, a de europeus, no período pós-independência e Proclamação da República, a de sírios e libaneses, japoneses, portugueses, coreanos, ao longo do século XX e, no início do século XXI, a de haitianos, venezuelanos, africanos, árabes da Síria, bolivianos, peruanos, chineses. Isso sem contar o fluxo migratório interno, que fez com que muitas pessoas do Nordeste migrassem para o Norte, o Sudeste e o Sul do país. Aos dramas da recepção de migrantes, estrangeiros ou nacionais, há que acrescentar os dos/as brasileiros/as que, sobretudo a partir da década de 1980, migram para os países do Norte, participando das angústias tantas vezes apontadas pelos discursos do Papa.
Para quem entra ou para quem sai, no entanto, as imagens do mar, do porto e do farol guardam sua pertinência não só para o contexto no qual foram utilizadas na França. Também no Brasil, seu extenso mar, pontilhado de inúmeros portos e faróis, é lugar de travessia, trazendo e levando vidas cheias de esperança, mas também de angústias, medos e desejo de encontrar portos amigos, hospitaleiros, sinalizados por faróis que indicam que a travessia terminou e é possível aportar e começar de novo, pois encontra chances de construir uma nova vida, que não é só sobrevivência, mas digna de ser vivida.
Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de teologia da FAJE