Geraldo De Mori SJ
“Olhai as aves do céu […] Olhai os lírios do campo” (Mt 6, 26. 28)
O mundo é acessível às pessoas através dos sentidos: visão, audição, olfato, paladar, tato, que lhes permitem sentir e conhecer o real. Quando um deles falta ou entra em pane, os demais lhes vêm em socorro, possibilitando outras formas de relação com as coisas e com os demais humanos. A visão e a audição, em particular, gozam de grande importância no dia a dia da maioria dos homens e mulheres, possuindo um estatuto particular na filosofia e da teologia (1) . Nas grandes tradições do cristianismo, ver e escutar captam o “sagrado”/“santo” respectivamente como “manifestação” e “proclamação”, dando origem às confissões católica e ortodoxa, mais marcadas pelo viés sacramental da manifestação, e às protestantes, mais voltadas ao caráter profético da proclamação.
Embora a audição tenha a primazia nos textos proféticos das Escrituras judaicas e cristãs, e a visão seja posta sob suspeita, por ser a porta por onde entra a idolatria, sendo central no processo que levou à queda dos primeiros pais, seduzidos pela tentação de “ter os olhos abertos” e serem “como Deus” (Gn 3,5), “vendo” a árvore do conhecimento do bem e do mal como boa para comer e “agradável aos olhos” (Gn 3,6), o conjunto da bíblia é mais nuançado sobre o lugar da visão, como o mostram o início do livro do Gênesis, primeiro livro da bíblia, e o final do Apocalipse, último livro da bíblia.
De fato, no primeiro capítulo do Gênesis, depois de criar a luz, Deus a vê e aprecia: “E Deus viu que era boa a luz” (Gn 1,4). Este refrão, que se repete para a criação das obras do terceiro ao quinto dia, ganha mais relevo na obra do sexto dia, o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, na diferença entre homem e mulher, e ao conjunto da criação: “E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom” (Gn 1,31). Por sua vez, no Apocalipse, ao vidente é dado “ver um novo céu e uma nova terra” (Ap 21,1), “a cidade santa, a nova Jerusalém” (Ap 21,2), na qual não havia “templo, porque o seu templo é o senhor Deus todo poderoso, e o Cordeiro” (Ap 21,22). Na nova criação, os servos do senhor “verão o seu rosto” (Ap 22,4). Portanto, o caminho da visão no conjunto da bíblia é o de sua conversão, ou seja, o que transfigura o olhar humano tendo como referência o olhar divino e sua intenção, que é a de maravilhar-se diante da bondade das criaturas, cuja destinação é a contemplação do próprio Criador.
O termo que diz “bondade” no primeiro livro da bíblia é o mesmo que diz beleza. Portanto, ao ver que tudo era bom e, mesmo, muito bom, Deus também vê que tudo era belo ou muito belo. Certamente os critérios de bondade e beleza variam de cultura para cultura. São eles, porém, que dão origem a duas dimensões essenciais da existência humana: a ética e a estética. A primeira é norteadora das noções de bem e mal, que, além de fundarem os valores da convivência humana, pautam grande parte das instituições jurídicas e políticas das sociedades. A segunda leva às apreciações de beleza e feiura, essenciais nos processos de conhecimento de si e reconhecimento dos demais.
Em geral, o ser humano se experimenta como uma mescla de bondade e maldade, de beleza e feiura, que o faz, por um lado, nem sempre escolher e promover o bem, e, por outro, nem sempre construir e promover o belo. Essa ambiguidade, que lhe é constitutiva, faz dele enigma para si mesmo, como o diz Paulo em Rm 7,15-25: “não entendo o que faço, pois não faço o que gostaria de fazer […] mesmo tendo dentro de mim a vontade de fazer o bem, não consigo fazê-lo […] mas se faço o que não quero, já não sou eu quem faz isso, mas o pecado que habita em mim é que faz”. É sobre esse enigma, que também busca explicar como o mal pôde introduzir-se numa criação boa e bela, que se debruça a doutrina do pecado original, indicando o lugar da liberdade humana no mal que existe no mundo, salvaguardando, porém, seu caráter misterioso.
Além de experimentar-se no mais íntimo como mescla de bem e mal, de beleza e feiura, o ser humano é constantemente recordado que dessa mescla brota muita maldade e feiura, e isso o impede de dar-se conta de que, apesar do mal e do feio, o bom e o belo podem irromper a cada instante, mais ainda, de que eles têm o poder de eliminar os efeitos das ações que pervertem a ética e a estética. Certamente, isso não se dá como num passe de mágica e não basta dizer que esses efeitos deixaram de existir. Se é por uma ação que a maldade e a feiura irrompem no mundo, também é por uma ação que elas poderão ser combatidas, mesmo que nem sempre totalmente revertidas.
Os últimos anos têm sido marcados por um acentuado pessimismo, resultado, sem dúvida, de uma forma de olhar o mundo e a sociedade. Esse olhar tem captado os equívocos de decisões e ações que estão na origem, entre outras, das seguintes situações: a mudança climática e a ameaça do futuro da vida no planeta; o descrédito da política que aposta na discussão e no consenso, e o surgimento de regimes e políticos que flertam com o autoritarismo e alimentam a beligerância e a polarização; os efeitos terríveis da “terceira guerra mundial em pedaços” (FT, 25), como a morte de inocentes, o afluxo de refugiados e migrantes; a corrupção na gestão da coisa pública; a precarização da vida, como resultado das novas configurações dos “donos do poder”; os efeitos de uma pandemia que mostrou a fragilidade do modo de conceber a vida no atual momento da história da humanidade; a disseminação do ódio e da mentira; etc.
Quem experimenta a vida à luz da fé cristã, é chamado a fazer o caminho cujo início e fim é atravessado pelo convite a olhar o mundo com o olhar divino, ou seja, vendo sua origem e seu fim como atravessados pela bondade e pela beleza, sentindo-se chamado também a fazer “novas todas as coisas” (Ap 21,5). No fundo, trata-se de converter o olhar, tornando-o capaz de maravilhar-se diante da bondade e da beleza presentes no mundo e nos seres humanos, em sua diversidade e particularidade. É interessante, nesse sentido, a experiência da multidão. Sentir-se em meio a tantas pessoas diversas, por sua condição social, étnica, religiosa, de gênero, de idade. Dar-se conta de que cada um é único, portador de uma história também única, feita de sonhos e esforços por realizá-los, conquistando a felicidade. Mas também, que cada história única é atravessada por contradições, equívocos, ambiguidades, sofrimentos, que fazem com que muitas vezes o mal se introduza no mundo, com seu cortejo de horrores. Deus olha o mundo e maravilha-se com o enigma que cada um/a é. Sofre também com os/as que sofrem e com os/as que fazem os demais sofrerem. Horroriza-se com as decisões que pervertem as relações, ameaçando a existência do conjunto de seus filhos e filhas.
O caminho para a páscoa, proposto pelas igrejas cristãs como caminho da “nova criação”, não ignora a maldade e a feiura presentes no mundo, mas deixa-se converter pelo olhar divino, que atravessa o enigma que cada um/a é, para acolher sua maravilha.
Geraldo Luiz De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
1. Em três ocasiões abordamos em Palavra e Presença o lugar dos sentidos na existência humana e cristã no ano de 2021: 1. Sim à beleza, à verdade e à bondade; 2. Os sentidos: “portas” e “janelas” de acesso à beleza, verdade e bondade do mundo; 3. A escuta como origem da beleza, verdade e bondade do mundo