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Migalhas…teológicas

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Geraldo Luiz De Mori, SJ

“E desejava alimentar-se com as migalhas que caíam da mesa do rico” (Lc 16,21).

“Sim, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus senhores” (Mt 15,27).

 

Uma obra célebre do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard, Migalhas filosóficas, escrita sob o pseudônimo de Johannes Climacus, explora, através da metáfora das “migalhas”, grande parte da tradição filosófica ocidental, estabelecendo um contraponto entre a concepção de conhecimento e verdade no pensamento socrático-platônico e o paradoxo do cristianismo e sua compreensão da necessidade de um “mestre” que possa conduzir ao conhecimento da verdade. O termo “migalhas”, que evoca “restos”, “fragmentos” de algo que foi fraturado ou esmagado, ganha um sentido inusitado na leitura kierkegaardiana. Poderia ele também ser explorado em teologia?

Em dois episódios dos evangelhos sinópticos esse termo aparece: na parábola do rico e de Lázaro, em que o pobre Lázaro espera que caiam as migalhas de comida da mesa do rico para poder alimentar-se (Lc 16,21); no episódio da cananeia, no qual a mulher, após ouvir Jesus dizer que não se podia tirar a comida dos filhos para dá-la aos cães, lhe responde que também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos senhores (Mt 15,27). No primeiro caso, as migalhas que caem da mesa do rico alimentam o pobre Lázaro e no segundo, alimentam os cães, ou seja, essas migalhas têm o poder de saciar os pobres e os animais, não são apenas restos que não servem para nada. Além do mais, ao dizer que não se pode tirar o alimento dos filhos para dá-los aos cães, Jesus retoma um preconceito dos judeus contra os pagãos, região na qual se encontra, e que entre certos grupos do judaísmo de sua época eram associados aos cães. A mulher devolve o preconceito, dizendo que os cães podem se alimentar das migalhas.

Um fato ocorrido no dia 16/04/2024, numa agência bancária do Rio de Janeiro, chamou a atenção das mídias do Brasil. Uma senhora levava seu suposto tio, em uma cadeira de rodas, a uma agência bancária para realizar um empréstimo. O homem estava, porém, morto, e as investigações iniciais levam a crer que já estivesse morto ao ingressar na agência bancária. As interpretações desse episódio estranho são muitas. Alguns acreditam que a mulher queria dar um golpe, utilizando-se do corpo do suposto tio. Outros, mais benévolos, acreditam na versão da defesa da mulher, segundo a qual ela não sabia que o tio estava morto. O inquérito policial deverá esclarecer o caso, mas, para além do ocorrido, é importante buscar o que ele revela, não só da pessoa que o protagonizou, mas de algo latente na sociedade e na cultura brasileira, e que questiona o olhar de quem busca compreender os acontecimentos e a própria existência à luz da fé.

O fato em si parece não ter nenhuma relevância, tanto do ponto de vista social, quanto econômico, político ou cultural, e muito menos ainda religioso. Caso se confirme que a mulher queria dar um golpe, seria mais um na infinidade de episódios do gênero presentes no cotidiano de grande parte da população brasileira. Caso não se trate de um golpe, seria mais um outro mal-entendido que igualmente atinge uma pessoa inocente.

As duas possibilidades podem, porém, revelar algo mais profundo sobre a sociedade brasileira, como as migalhas dos textos evangélicos evocados ou as migalhas através das quais Kierkegaard releu grande parte da tradição filosófica ocidental. De fato, caso se confirme a tentativa de um golpe, a grande questão é: até onde é capaz de chegar o ser humano, que se utiliza do corpo de um morto para tirar vantagem para si? No episódio se associariam o desrespeito à pessoa que morreu e a desonestidade. No fundo, como já havia diagnosticado Hannah Arendt, é a banalidade do mal, que atinge o “cidadão comum”, tornando-se quase que naturalizado, pois é a manifestação dramática do que de mais baixo existe no ser humano, tradução de sua profunda desumanização. Mais que condenar o ato como moralmente mau, a grande questão é: o que ele revela de cada um de nós? Até que ponto esse episódio me atinge e me provoca à reviravolta, como no caso de Jesus com a cananeia, que foi capaz de reverter o preconceito e fazê-lo revelar a estreiteza de um ponto de vista cultural e religioso levando à conversão do olhar e da atitude? Até que ponto estou tão habituado com o mal, que já nem mais sou capaz de me deixar interpelar, como que aprisionado por algo que se tornou natureza?

Na perspectiva de uma teologia que arrisca debruçar-se sobre as migalhas de fatos do cotidiano e descobrir nelas “alimento” para sobreviver ou para rebelar-se ante preconceitos estabelecidos, a banalidade do mal não pode se tornar natureza. A atitude de Lázaro, que parece passiva, é a de quem sobrevive apesar do mal, como parece ser o caso de grande parte da população brasileira submetida a cada dia a um sistema que reifica os mecanismos de exploração, que só enriquecem os ricos, como no caso da parábola de Jesus. Essa aparente passividade parece se contentar com as sobras, as migalhas que caem das mesas dos ricos do sistema, mas nela se encontra também uma sabedoria, que é feita de resiliência, e que é responsável pela sobrevivência dos pobres.

Mas não é só através da resiliência e da passividade que se deve enfrentar a banalidade do mal. No caso da cananeia, ela encontra a palavra que revela o preconceito, ou seja, ela desmascara os mecanismos que travestem palavras e atitudes, que fazem com que o mal pareça natureza. E Jesus reconhece em sua palavra a força de uma revelação, pois cura sua filha, mostrando que, para além da resignação, existe uma força fundamental, que é a da fé na vida, ou na luta pela existência livre daquilo que a diminui.

Como as migalhas, que alimentavam Lázaro, segundo a parábola contada por Jesus, e os “cachorrinhos”, segundo a resposta da cananeia a Jesus, podem despertar não só resiliência frente à naturalização do mal, mas também o poder de revelar, não só preconceitos de um sistema que mata, mas também caminhos de resistência e de construção do novo? Até que ponto o que é o mais elementar, ser alimentado, nem que seja por migalhas, pode despertar palavras como as da cananeia em um contexto que parece ter se habituado ao mal? E o mal não é somente “tirar vantagem” sobre o outro, mas introduzir nas pequenas atitudes do dia a dia estratégias que escondem e mascaram o mal ou o tornam o “pão nosso de cada dia” do cidadão comum.

Da mesma forma que as migalhas puderam alimentar Lázaro e os cachorrinhos, é através delas, que podem se traduzir em iniciativas aparentemente insignificantes, que o mal também poderá ser combatido. Nesse sentido, as migalhas que alimentam podem fazer a diferença. O movimento de Jesus não foi o dos vitoriosos, como o rico da parábola ou os senhores evocados pela cananeia. Seu aparente fracasso, parecia ter dado razão à banalidade do mal instaurada nas mentes e corações de tantos de seus contemporâneos. Mas a força que vem dos fracos, das migalhas que os alimentam e da palavra que não se contenta com os preconceitos, mostra que é na fraqueza que se encontra o poder de Deus (2Cor 12,9), que não segue a lógica do poder do mundo, mas a do amor mais forte que o mal.

Geraldo Luiz De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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