Marília Murta de Almeida
O poema “Morte e vida severina”, clássico de João Cabral de Melo Neto, nos inquieta com o silêncio final do personagem Severino, o retirante que chega a seu destino tomado pela pergunta sobre se vale a pena viver. Bem sabemos que, segundo Albert Camus, esta é a pergunta primordial que a filosofia deveria buscar responder. O poema de João Cabral constrói uma resposta: sim, vale a pena viver, pois a vida é sempre aberta ao novo e a força da vida nova é, em si mesma, convite para que participemos dela. O tecido do texto expõe diversas imagens do novo que nos seduz e emociona. Cito aqui a minha preferida: do menino que nasceu, diz que “é belo como a última onda / que o fim do mar sempre adia”. Quando parece que não há mais ondas, que chegamos ao fim, uma onda nova se forma, sem que tenhamos nenhum controle sobre ela. E o novo que chega tem poder de contaminar o que já está: “infecciona a miséria / com vida nova e sadia”.
Pois bem, depois de nascido o menino, que é filho do Mestre Carpina, a quem Severino fizera a pergunta sobre a vida, o Mestre traduz em palavras o que tinha visto com o irromper da vida nova, e o poema finaliza com sua fala:
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.
A resposta do poema, endossada pelo Mestre Carpina, tem o poder de convencer o leitor e poderia ser lida como cabal, não fosse o final brusco que nos deixa sem saber a reação de Severino. Teria ele sido convencido?
Vale lembrar que este poema tem como subtítulo a explicação de que é um “Auto de Natal pernambucano”, o que nos permite viajar sem pudor pelas imagens do nascimento do menino como andaríamos pela cena do nascimento de Jesus. O Mestre Carpina, carpinteiro como José; o menino, força da vida nova que vem para infectar o velho com sua beleza, como Jesus. A Vida Nova, por si mesma, é motivo para não escolhermos a morte. A potência do novo faz com que tenhamos motivos para não fechar a porta da vida, pois ela mesma tem o poder de nos surpreender com o que ainda não vislumbramos.
Entretanto, João Cabral não nos mostra a reação de Severino em seu Auto de Natal. A desconfiança gerada no leitor provavelmente é eco daquela do próprio autor. Afinal, como não sermos tomados pelo ceticismo ao contemplar a realidade humana, tomada de sofrimento e injustiça, mais de dois mil anos depois do nascimento do Menino, e a despeito dos novos nascimentos de meninos e meninas a cada instante? A força da vida nova, com seu poder de abrir portas em salas sem saída, parece não ser suficiente para nos tornar capazes de fazer do mundo um lugar bom para a vida humana.
O que nos falta, além de ter o caminho iluminado pela própria vida que se anuncia? Talvez nos falte perceber o movimento embutido no título do poema, morte e vida severina, passagem da morte à vida. Não se trata de prontamente afirmar a fé na ressurreição, o que nos deslocaria muito rapidamente para a imagem da força de erupção da vida. Mas, antes, de fazer paragem frente à morte. Na observação do movimento da natureza que faz da morte fonte de vida e na apreensão do que há nisso de abissal para a existência humana. A vida animal precisa da morte de uma outra vida para se manter, no fluxo infinito da cadeia alimentar, a vida vegetal nasce da morte da semente, mas, para a sensibilidade humana, esse fluxo contém espinhos.
Na paragem frente à cruz de Jesus, talvez tenhamos a chance de entender o que não temos ainda entendido. Talvez na dor mesma esteja o sentido secreto procurado. A passagem da morte à vida não pode ser rápida, porque se rapidamente respiramos aliviados não há tempo para nascer a compaixão. A vida nova que irrompe do coração compassivo, ferido de morte pela contemplação da dor e da injustiça, terá talvez força suficiente para a construção do mundo sonhado.
Temos nos esquivado dessa demora, bem sei. Mas mesmo no correr dos dias – que parecem correr cada vez mais rápido – temos a chance de encontrar uma fresta por onde encontrá-la.
Nesta semana vimos circular pelas redes sociais o vídeo em que a Preta Gil canta com seu pai a música Drão, feita por ele na ocasião de sua separação da mãe de Preta, que agora luta pela vida portando em si uma doença que pode levá-la à morte. Morte e vida se entrelaçam em um jogo em que vemos o amor trabalhar entre pai e filha, pai e mãe, filha e mãe, filha e vida. Leiamos um trecho da letra da música:
Drão, o amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
(…)
Quem poderá fazer aquele amor morrer
Se o amor é como um grão
Morre, nasce, trigo
Vive, morre, pão
A aparente contradição pode nos abrir a fresta compreensiva que nos falta: o amor tem que morrer para germinar e, ao mesmo tempo, o amor não morre, pois a germinação gera mais vida. A nova germinação não pode ser lida rapidamente, sem que paremos na morte que a precede. O amor tem que morrer, mesmo que, ao morrer, não morra definitivamente. A nós, não cabe a alegria fácil da vitória sobre a morte. Cabe, antes, o desdobrar do amor até que seja capaz de recobrir até a morte. Marcado pela dor, mas recriado pela vida que se renova, o amor em nós pode atingir sua força criadora.
Parece ser assim com Jesus e sua cruz.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE
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