Élio Gasda SJ
Natal é tempo de esperança! Não de uma esperança romântica, mas provocativa, ousada e solidária. Como refletir sobre o Natal nesse mundo de desigualdade social, concentração de renda e riqueza, desrespeito, ódio, violência, devastação ambiental, consumismo irresponsável?
Natal é tempo de reafirmar nossa resistência e alimentar “a fé na vida, fé no homem, fé no que virá”. Os últimos anos foram de muita dor, cansaço, medo, insegurança, lutos. É importante celebrar o Natal, entender o sentido de Deus que se faz criança para estar entre nós.
Estamos em noite escura. O mundo é um presépio vivo. Jesus continua nascendo debaixo da marquise de viadutos e dos prédios luxuosos, nas ocupações e aglomerados, nas avenidas em meio aos carros importados e pessoas indiferentes. Ele nasce do ventre de tantas Marias, que já são mais de 220 mil vivendo nas ruas (IPEA/2020). São mais de seis milhões de famílias sem teto e seis milhões de imóveis vazios. Muita gente sem casa, muita moradia sem gente. Uma tragédia social!
Jesus continua nascendo em uma sociedade patriarcal e machista. São tantas Marias agredidas, desrespeitadas, violentadas, assassinadas. O próprio lar é o lugar mais inseguro para 48% das mulheres que sofrem violência (Relatório Visível e Invisível/2021). Absurdo!
Muitas Marias engrossam o exército de mulheres provedoras da família. Já são mais de 10 milhões, ou 15,3% dos lares brasileiros (IBGE 2010). Muitas Marias perderam o emprego em plena pandemia. Segundo o Ministério do Trabalho, foram perdidas 480 mil vagas em 2020. Maria é uma das 462 mil mulheres dispensadas do trabalho formal. Mulher trabalhadora tratada como mercadoria. É descartada quando não serve mais ao mercado.
José é um trabalhador autônomo, precário e sem direitos como tantos pais de família pobres, pretos e periféricos, desempregados. Faz parte das estatísticas dos 2,6% da população com mais risco de ser assassinada (Atlas da violência 2021). Muitos Josés podem morrer na mão dos milicianos, ou durante ação da PM nos morros, ou pela pandemia. Jesus pode ficar órfão. São milhares de órfãos.
Jesus continua contado entre os pobres que estão na fila do sopão, da solidariedade e de algum auxílio para comer. Não há trabalho, não há renda! A crise econômica, a pandemia e a falta de políticas públicas levaram 50% da população para a insegurança alimentar. Estudo da Rede Brasileira de Soberania e Segurança Alimentar (Rede Pessan) contabiliza quase 20 milhões de pessoas passando fome. O menino Deus figura nas cenas flagrantes de pessoas revirando lixo, esperando nas filas de supermercado e do serviço social ou das campanhas de alimentos das igrejas.
No Natal, as crianças devem nascer. Nascer! Mas Herodes continua perseguindo vidas inocentes. Jesus continua nascendo nas comunidades indígenas ameaçadas de extinção por um governo que nada fez para evitar que quase 55 mil indígenas fossem infectados pela covid-19 e mais de mil perdessem a vida (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib). Não bastasse, precisam enfrentar garimpeiros, madeireiros e o agronegócio. Um ecocídio! Relatório do Projeto de Monitoramento da Amazônia Andina (MAAP) aponta que mais de 860 mil hectares de floresta primária foram perdidos na Amazônia em 2021 (área seis vezes maior que o município de São Paulo).
Em um Natal descristianizado, Jesus tornou-se personagem secundário. Não parece haver crise social ou uma pandemia. No Natal do mercado, o comércio não pode parar. Listas de presentes, shoppings e ruas lotadas. O comércio varejista pretende faturar mais de R$57 bilhões neste final de ano (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo).
A vida é o maior dom de Deus! Celebrar o Natal cristão é defender a vida. O aniversário do nascimento de Jesus é uma Luz de esperança em um mundo em profunda escuridão. É urgente recuperar o sentido do Natal cristão. Um cristão que entende o sentido do Natal é capaz de tornar Jesus presente neste mundo.
Voltemos a Belém. Ali estão as raízes do cristianismo. Assim Jesus começou sua passagem entre nós: entre os insignificantes e humilhados. Não na ostentação e na fama, mas entre os anônimos, os simples, os maltratados. São milhares de presépios permanentes mundo afora.
Aqueles por quem ninguém se interessa, são os que mais interessam a Deus. Que a Luz vença as trevas. Que seja uma festa do nascimento de Jesus com Jesus, o Sol da Justiça!
Não estamos sozinhos neste caminho por uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna. Deus conosco – Emanuel – se humaniza para permanecer no meio de nós.
“Jesus nasce para todos e doa a toda a humanidade o amor de Deus” (Papa Francisco).
Celebrar o Natal é esperançar na luta de todos os dias. É renovar a esperança na humanidade.
Um Feliz e Revolucionário Natal!
Élio Gasda SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE