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No meio do caminho tinha… uma “cadeira”

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Geraldo Luiz de Mori, SJ

“Que o teu sim seja sim, e o teu não, não. O que passa disso vem do maligno” (Mt 5,37)

 

Carlos Drummond de Andrade, no poema “No meio do caminho”, diz, de diferentes maneiras, que “tinha uma pedra no meio do caminho”. Provavelmente esse poema poderia ser reescrito nesta semana com a substituição da pedra pela cadeira, ganhando então a seguinte formulação: “no meio do caminho tinha uma cadeira”. De fato, todo o país assistiu estarrecido à reação de José Luiz Datena, candidato à prefeitura de São Paulo, às provocações de seu opositor, Pablo Marçal, também candidato ao mesmo cargo nas eleições do mês de outubro. O poema de Drummond, escrito após a perda de seu primeiro filho, Carlos Flávio, nascido em 1927, foi publicado em 1928, no primeiro número da Revista de Antropofagia. Alguns comentaristas pensam que a palavra “pedra” se refere, na verdade, à palavra “perda”. Outros o associam ao poema de Olavo Bilac, Nel mezzo del camin, como uma espécie de deboche ao poema parnasiano. Para além dos motivos que lhe deram origem, o poema se tornou uma espécie de ícone para pensar aquilo que interrompe um percurso, seja pessoal, seja coletivo. No caso do debate entre candidatos à prefeitura de São Paulo, o que chama a atenção, mais que o fato em si, é a maneira como repercutiu na opinião pública, numa demonstração da enfermidade pela qual passa a palavra e a política no país na atualidade.

A política, definida em alguns dicionários, como a arte de governar, foi pensada filosoficamente por Platão, na obra República, e por Aristóteles, na obra Política, na qual definiu o ser humano como “animal político”. Ao longo dos séculos foi ganhando novos significados, tanto do ponto de vista filosófico quanto no da ciência política. Não é aqui o caso de trazer esses distintos significados, mas de pensar o que o episódio da cadeira diz sobre a política, em geral, e sobre as patologias que ela padece no Brasil, em particular.

A definição da política como arte de governar é interessante, pois associa a política, que em geral, supõe a luta de interesses entre os diferentes atores que compõem uma sociedade, à arte, que é o domínio da imaginação, da criatividade, do jogo. Com efeito, para que interesses contrários possam convergir, é necessário criar consensos, o que só é possível se houver abertura para o diálogo, que supõe acolher o diverso, ser capaz de renunciar a certas demandas, em função, talvez, de algo mais amplo, que, no caso da política, é identificado com o “bem comum”. Só a razão poética ou artística é, de fato, capaz desse tipo de “jogo”, mas ela só pode intervir no âmbito de um discurso, que recorre à palavra, que é da ordem da razão e que deve convencer os diferentes atores em disputa.

O mundo contemporâneo tem experimentado um “adoecimento” da política. Cada vez mais as pessoas têm dificuldades de abrir-se a um diálogo franco, tanto no âmbito mais íntimo, como o da família, ou o das proximidades nas quais a vida em sociedade acontece, mas, sobretudo, no âmbito mais complexo, como o dos debates de ideias, que definem grandes opções sobre o que é o bem comum para uma determinada sociedade. Há vários anos a política tem sido “demonizada”, identificada somente com corrupção, o que lhe retira seu caráter de “arte” de estabelecer consensos, a partir da argumentação que recorrem à palavra e ao debate público. Abre-se então o espaço para todo tipo de autoritarismo, e líderes ou partidos desse perfil ganham adesão e audiência, por se apresentarem como os verdadeiros representantes dos interesses do povo. Isso acontece tanto em grupos ideologicamente identificados com posições de esquerda quanto de direita.

O “adoecimento” da política em geral tornou-se agudo no Brasil, ganhando, a partir das manifestações de junho de 2013, grande impulsionamento, seja porque os partidos que então governavam o país não souberam dar respostas às reinvindicações expressas pela população, seja porque uma extrema direita oportunista soube manipular as insatisfações e identificar a “arte” de fazer política no país apenas com a corrupção. As eleições de 2018, com a vitória de um candidato da extrema direita, e o modo como ele governou nos quatro anos, transformando os que representavam a oposição em inimigos, não terminou com as eleições de 2022. Prova disso foram os atentados aos poderes que representam o estado de direito do país em 8 de janeiro de 2023. O episódio da cadeira lançada é mais uma das expressões dessa “derrota” da palavra que dá origem à política.

A derrota da palavra não é somente a que alguns candidatos têm tentado fazer com discursos que provocam reações virulentas, como o que se deu em São Paulo, mas também a que se expressa em quem “aplaudiu” aquele que lançou a cadeira ou aquele que provocou seu lançamento. Nesse sentido, a “cadeira no meio do caminho” é a revelação de uma sociedade doente, para a qual a política é a arena onde há uma luta, em que o mais forte é que vence. O mais forte, no caso preciso, é o que tem mais adesão entre seguidores de plataformas que buscam ganhar adeptos, tornando a política espetáculo, esquecendo que o bem comum, ao qual ela deveria procurar e assegurar, é a vida de milhões de cidadãos. Nesse sentido, o movimento, infelizmente tímido, por pouca adesão entre cristãos, de “reencantar a política”, proposto pela CNBB há alguns anos, mais do que nunca necessita ser retomado, lembrando, como disseram vários papas antes de Francisco, mas que ele tem repetido diversas vezes, que a política é a “forma mais alta da caridade”.

Como “reencantar a política” numa sociedade que parece se desinteressar dela ou que não quer discutir ou pensar na “melhor política”, mas que se contenta em aplaudir e seguir candidatos que se dizem representantes do povo, mas que na verdade defendem seus próprios interesses ou os de corporações que não se preocupam com o bem comum, ou, em alguns casos, que estão associados ao crime organizado, que tanto cresceu no país?

Tanto em grupos evangélicos quanto em segmentos católicos que mais têm aderido à perspectiva de uma visão populista e autoritária da política no Brasil, o que mais impressiona é a incapacidade de dialogar. O desencanto, potencializado pela cultura do supérfluo e do presente, se traduz muitas vezes em fechamento a qualquer discussão, dando origem, muitas vezes, à adesão cega a lideranças antidemocráticas. O movimento que o Brasil conheceu durante o processo de redemocratização, em grande parte apoiado e patrocinado pelas igrejas cristãs, com particular protagonismo da Igreja católica, foi capaz de formar cidadãos/ãs preocupados em criar uma sociedade mais justa e cidadã. Como despertar as novas gerações para valores tão centrais como o respeito do outro, o direito dos mais vulneráveis, a justiça em suas várias expressões? O que a situação atual da política no país mostra, tão bem ilustrada pela cadeira lançada contra um oponente num debate, é que a democracia, com seus limites, mas também possibilidades, e a “arte de governar”, própria à política, nunca são uma situação assegurada uma vez para sempre.

Nesse sentido, cada geração tem que começar de novo. Certamente isso não significa que ela comece do zero. Nem sempre, porém, os aprendizados do passado, são assegurados e se tornaram convicção, a ser assumida pelas gerações seguintes. Por isso, o “reencantar a política” é um movimento que nunca pode ser dado por adquirido, necessitando sempre de novo ser reinaugurado, provocando nas novas gerações interesse e estimulando-as a apostarem que a vida em comum, embora difícil, é a única forma de coexistir nas sociedades hodiernas, embora nelas cada vez mais ganhe importância o indivíduo, seus interesses e desejos, muitas vezes sem levar em conta o dos que coexistem com ele numa mesma sociedade. Oxalá a “cadeira no meio do caminho” possa despertar no povo brasileiro o desejo de reinventar uma outra forma de viver e de fazer a política.

 

Geraldo Luiz De Mor, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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