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Novos e velhos desafios e tarefas da teologia cristã

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Geraldo Luiz De Mori SJ

Estejam sempre preparados para responder a qualquer que lhes pedir a razão da esperança que há em vocês” (1Pd 3,15)

 

Recentemente, o Papa Francisco pronunciou-se novamente sobre a teologia e sua missão na Igreja e no mundo. Foi na audiência do dia 10/05/2024, ao receber a delegação da International Network of Societies for Catholic Theoogy (INSeCT), da qual, pelo Brasil, participa a SOTER (Sociedade de Teologia e Estudos de Religião), principal associação de teólogos, teólogas e cientistas da religião do país. Em sua alocução[1], ele levanta alguns desafios a serem levados em conta pelo saber teológico e aponta para algumas das tarefas mais urgentes às quais o saber da fé deverá assumir na época atual.

O Papa inicia seu discurso lembrando que a teologia é um “precioso ministério eclesial”, porque, “pertence à fé católica dar razões da esperança a quem lhe pedir” (1Pd 3,15). E a esperança, diz Francisco, “não é uma emoção ou sentimento, mas a pessoa mesma de Jesus, caminho, verdade e vida” (Jo 14,5). Ao associar a missão da teologia à vida eclesial, e nesta, ao acalanto da esperança, o Pontífice mostra o enraizamento da inteligência da fé numa das dimensões mais fundamentais da existência de grande parte da humanidade: as convicções, que, para a fé cristã, se traduzem como ato de crer, a fé.

Segundo a psicologia, a psicanálise, a antropologia, a filosofia e outras ciências, a fé é uma experiência comum a todo ser humano, ou seja, ela é uma realidade antropológica, que remete à capacidade que tem cada homem e cada mulher de crer na vida, de crer em si mesmo, de crer no outro. Em geral, esse crer fundamental se expressa nas atitudes cotidianas mais simples, e é “aprendido” desde os primeiros instantes da vida, pois a criança, ao sair do ventre da mãe, vai descobrindo que não é a mãe e pelo carinho recebido desde os primeiros instantes da vida, vai ganhando confiança, mesmo na ausência da mãe, e essa confiança é a confiança na vida. Aos poucos ela vai também descobrindo que pode confiar nos que compõem o núcleo familiar, os colegas que vai conhecendo na escola, os vizinhos, a sociedade em geral. Grande parte das instituições humanas são baseadas nesse crer fundamental. Dele emerge a pergunta por aquilo ou aquele que subjaz ao próprio ato de crer, dando origem à experiência do transcendente, visto em muitas religiões, como um Deus pessoal, em quem se pode confiar totalmente.

Esse confiar totalmente no que os cientistas da religião chamam de “Totalmente Outro” e a teologia de “Deus”, tem como modelo, no cristianismo, o próprio Jesus. Segundo a carta aos hebreus, ele é o inaugurador da fé (Hb 12,2), aquele que a leva à sua máxima expressão. Quem crê na vida, em si mesmo e no outro como Jesus, descobre, como diz o Papa no breve discurso aos membros da INSeCT, que ele é, como diz o texto joanino, o caminho, a verdade e a vida. A Igreja é não só a comunidade dos que vivem dessa convicção, mas também a servidora dos que buscam compreender e pautar sua vida a partir dela. Nesse sentido, como “inteligência da fé”, a primeira função da teologia é, como diz Francisco, ajudar os que creem a darem razão de sua esperança.

Mas quem crê não abandona o mundo, pois o mundo é a casa na qual é gestado e dado à existência, a casa na qual cresce e encontra as razões para viver com sentido. Por isso, ainda segundo o texto do Papa, a teologia é “preciosa na mudança de época que estamos vivendo, uma sociedade multiétnica, em contínua mobilidade, com interconexões de povos, línguas e culturas diversas”. Nesse mundo, ela é chamada a ser reflexão “crítica, rumo à construção de uma convivência na paz, na solidariedade e na fraternidade universais”. Portanto, o crer radical, ou seja, a fé teologal, não se reduz ao foro interno dos indivíduos crentes, mas tem que fermentar o mundo, traduzir-se em gestos concretos, ou, como diz são Tiago, em obras, pois a fé sem obras é morta. E a tradução disso no campo do saber da fé (= teologia), é pensar criticamente as dinâmicas que podem oferecer pistas para a construção da paz, da solidariedade e da fraternidade. Nesse sentido, a teologia tem uma função “pública”, ela é serviço à sociedade e deve iluminar os que creem em Jesus como Cristo, Senhor e Filho de Deus, a descobrirem em cada tempo e lugar que dinâmicas podem fazer o reino de Deus aproximar-se (Mc 1,15).

Além de debruçar-se sobre os dramas que marcam a condição humana, o Papa lembra a importância de a ciência da fé assumir as questões levantadas pelo progresso técnico-científico. Uma dessas questões, a da inteligência artificial, deve levar todos a “colocar-se juntos para compreender que coisa é o humano”, que coisa é digna dele ou “que coisa no humano é irredutível, porque divina”, uma vez que ele é “imagem e semelhança de Deus em Cristo”. Nesse sentido, continua Francisco, a teologia é chamada a ser “companheira de estrada da ciência e de todos os saberes críticos, oferecendo sua própria contribuição sapiencial, para que as diferentes culturas não se levantem uma contra a outra, mas, no diálogo, se tornem sinfonia”. Essa ampliação da missão da teologia, que, desde o início, buscou dialogar com os saberes mais conceituais, sempre a colocou em diálogo com as questões mais radicais levantadas pela inteligência humana, em geral estudadas pelos diversos campos do saber que foram surgindo ao longo do tempo. O surgimento da razão moderna levou-a a prescindir ou eliminar o saber da fé, reduzindo o campo de investigação da teologia. Esta situação tem mudado nas últimas décadas, abrindo novos espaços para o diálogo e a fecundação mútua entre os saberes.

O Papa continua sua alocução lembrando três diretrizes para o desenvolvimento da teologia hoje: a fidelidade criativa à tradição, a transdisciplinaridade e a colegialidade. Trata-se, diz ele, dos “ingredientes” essenciais da vocação do/a teólogo/a católico/a no coração da Igreja. O/a teólogo/a, como os “exploradores enviados por Josué à terra de Canaã, deve descobrir a justa via de acesso para a inculturação da fé”. Nesse sentido, ele/a deve saber que a tradição não é algo fixo no passado, mas que ela é “viva, que deve crescer, encarnando o Evangelho em cada ângulo da terra e em toda cultura”. O evangelho, que anuncia a morte e a ressurreição de Jesus, “é sabedoria de vida para todos/as”. É o saber para a existência humana, e deve tornar-se luz em toda a realidade. Por sua vez, a transdisciplinaridade dos saberes não é uma moda do momento, mas uma exigência da ciência teológica, que deve “auscultar as descobertas dos outros saberes para aprofundar a doutrina da fé, oferecendo ao mesmo tempo a sabedoria cristã para o desenvolvimento da ciência”. Para isso, ela necessita da colegialidade e da sinodalidade.

Como conclusão, Francisco lembra que o serviço da teologia não pode realizar-se sem “redescobrir o caráter sapiencial da teologia”, ou seja, ela deve unir “saber e virtude”, “razão crítica e amor”, pois a “fé católica opera através da caridade”, e a teologia sapiencial é a “teologia do amor”, e deve contribuir para expandir no mundo o amor.

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

[1] FRANCISCO, Papa. Saluto del Santo Padre Francesco alla delegazione dell’International Network of Societies for Catholic Theology (INSeCT). Venerdi 10 maggio 2024. In https://www.vatican.va/content/francesco/it/speeches/2024/may/documents/20240510-insect.html

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