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O Barão e o Instagram

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Carlos Roberto Drawin

Mergulhados nas contingências incompreensíveis, arrastados pelas vicissitudes históricas, nós caímos prisioneiros de nossas necessidades e circunstâncias e tornamo-nos reféns de nossas ansiedades e ilusões. Esta afirmação, talvez um pouco dramática, aparentemente não é mais do que a reiterada constatação de nossa condição humana e finita, tal como foi consagrada pela sabedoria das mais diversas culturas.

No entanto, ela se reveste de um novo significado e não pouca perplexidade neste momento limítrofe no qual nos aturdimos sob o clamor confuso do embate de duas épocas, quando a sensibilidade pós-moderna assinala o impasse de uma modernidade já perdida da certeza de si mesma e de seus antigos ideais. Envolvidos por esse turbilhão de acontecimentos e mudanças, incapazes de refletir sobre o mundo, não cessamos de nos exibir e de falar sobre nós mesmos. Na excitação das novidades falta-nos o chão, algum ponto de apoio arquimediano a partir do qual poderíamos assentar, com lúcida percepção e sereno juízo, a solidez necessária para enfrentar a agitação dos dias e das noites.

Por isso, mais do que nunca, parece-nos adequado recordar a célebre narrativa do Barão de Münchhausen, segundo a qual ele teria conseguido salvar-se de um inevitável afogamento ao sair do atoleiro puxando-se pelos próprios cabelos. O caráter hiperbólico da mentira retrata em sua ingênua comicidade, a situação algo ridícula e obviamente insustentável de uma autossuficiência levada às suas últimas consequências. A mentira do célebre barão transmudou-se na verdade de uma civilização que, arrancada de suas raízes milenares e seduzida por sua “vontade de potência”, acabou por atolar-se na impotência e no arbítrio de uma liberdade que antes fora tão ansiosamente desejada como a máxima realização do progresso.

De qualquer forma, a lembrança dos apuros do lendário Barão, serve-nos como recurso metafórico para exprimir a situação aporética de uma racionalidade crescentemente unívoca em sua articulação interna e em seu rigor formal e crescentemente equívoca em sua incapacidade de apreender uma experiência cada vez mais complexa e diferenciada em seu conteúdo e significação. Ou, traduzindo essa formulação filosófica numa linguagem imagética, poderíamos dizer que a nossa civilização se tornou autofágica ao devorar as suas próprias produções simbólicas e ao solapar a grande tradição espiritual na qual sempre se sustentou. As razões de ser, viver e esperançar teriam sido substituídas pela ideologia do bem-estar, a arrogância de uma tecnologia capaz de tudo prever e prover e, assim, capaz de nos assegurar as condições da felicidade? Afinal, o que restou desse sonho iluminista?

A carência de sentido poderia ser compensada pelo consumismo frenético? A angústia definitivamente curada por drogas? O Instagram seria suficiente para combater o tédio que nos invade? Com que armas morais podemos lutar contra a estupidez dos novos nacionalismos e fascismos ressurgentes, com que armas intelectuais podemos enfrentar a onda dos irracionalismos que vemos avolumando-se no horizonte do desencanto neoliberal?

Há trinta anos, o então eminente psicanalista, Contardo Calligaris, publicou num importante jornal paulista (Folha de São Paulo, 06/11/1994), um artigo curioso e instigante intitulado “Toscani filósofo”. Nele, o autor tece algumas considerações acerca do fotógrafo italiano Oliviero Toscani que então produzia a nova campanha da Benetton na faixa de Gaza que, já naquela época, era o território mais pobre e dilacerado do Oriente Médio. Calligaris observava em seu texto que o ideal clássico do Ocidente, aquele de uma humanidade comum, teria fracassado, pois nem o Cristianismo e nem a razão moderna tiveram êxito em estabelecer um consenso universal suficientemente inclusivo de povos e culturas. Esse fracasso, ele conjeturava, poderia ser superado pela universalização do mercado e do consumo? A veiculação das imagens de uma próxima época de ouro propiciaria a subjetivação necessária para operar um novo e mais leve consenso?  A publicidade seria mais efetiva para a implantação da paz do que a mais santa das intenções e o mais bem fundado argumento filosófico?

O artigo foi escrito após a queda do Muro de Berlim e a derrocada da União Soviética quando os arautos do “fim da história” apostavam num novo tempo de pacífica prosperidade. Passados trinta anos, as perspectivas se mostraram bem mais sombrias e a pretensa “pax americana” deu lugar a novas formas de violência e exclusão. O curso inexorável da globalização, distante da utópica universalidade, cristalizou-se num conformismo empobrecedor, mas revestido pelo colorido do divertimento. Haveria outra alternativa para além do fascismo e do Instagram? Nada mais nos restaria senão a expectativa fastidiosa de um futuro digital e minimalista?

A insistência das perguntas não traduz apenas um arraigado pessimismo intelectual. Elas trazem consigo, no atormentado das dúvidas, sementes de resistência, fagulhas de sentido. Por quê? Não seria essa uma conclusão apenas retórica e certamente tola? Ou, antes, as incertezas ao marcarem os limites do que é força a entrada do que ainda não é?

A lição do velho Barão de Münchhausen se faz valer. Não saímos do pântano em que nos metemos, nos puxando pelos próprios cabelos, apelando à autossuficiência da técnica e nos entregando ao fugidio das distrações. Não há certeza no “ainda não”, mas há esperança, porque o espírito “sopra onde quer” ao ser movido pela perquirição da transcendência.

Carlos Roberto Drawin é professor emérito do departamento de Filosofia da FAJE

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