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O Brasil não conhece o Brasil. O Brasil nunca foi ao Brasil.

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Geraldo De Mori SJ

“Foi para a liberdade que Cristo vos libertou” (Gl 5,1)

No próximo dia 7 de setembro, o Brasil recorda 199 anos do evento a partir do qual se tornou um país independente. O famoso “Grito do Ipiranga”, pronunciado pelo então príncipe Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim, é o marco a partir do qual a história oficial reconhece o fim do período colonial do país e o início de sua história de nação independente. Em geral, datas centenárias, sobretudo as de uma nação, despertam o retorno à memória e à história, descobrindo nelas aspectos ainda escondidos, pouco valorizados ou reprimidos, ou buscando nelas motivos para celebrar. Os símbolos da nação são então amplamente expostos, revisitados e ressignificados, na maioria das vezes, com motivos ufanistas, pois encarnam os elementos que melhor traduzem o que é a identidade e a especificidade da própria sociedade e cultura no concerto das nações.

A festa da independência do Brasil, apesar de repetir o que é lugar comum em comemorações similares na maioria das nações, tem uma particularidade que a distingue das demais. Ela não parece criar o elã expresso em comemorações e gestos de orgulho pela identidade nacional. Pode ser que isso se deva ao fato de ter sido sequestrada ou usada ideologicamente pelas elites que dominam o país desde o dia 7 de setembro de 1822. Pode ser também, como diz a música “Querelas do Brasil”, de Maurício Tapajós e Aldir Blanc, que isso se deva ao fato de o Brasil não conhecer o Brasil, de o Brasil nunca ter ido ao Brasil, ou, pior ainda, de o Brazil não merecer o Brasil, de o Brazil estar matando o Brasil. Com efeito, os desfiles militares, com os quais o 7 de setembro foi comemorado durante anos, na época da ditadura de 1964-1985, e que ainda ocorrem em algumas cidades do país, mais que despertarem o sentimento cívico de brasilidade, forjaram uma espécie de apatia e indiferença. Os símbolos nacionais, sobretudo as cores da bandeira, utilizados nessas ocasiões, só ganharam adesão multitudinária por ocasião das Diretas Já e dos jogos da Copa do mundo, sendo de novo sequestrados pelo movimento que levou ao Impeachment de Dilma Roussef e pelos apoiadores do atual presidente do país.

A Igreja católica, para a qual o anúncio do Evangelho é indissociável da vida e da promoção da justiça do reino, na Campanha da Fraternidade de 1995, que tinha como lema “Eras tu, Senhor!”, instigada pelo tema da 2ª Semana Social Brasileira, “Brasil, alternativas e protagonistas”, iniciou naquele ano o “Grito dos Excluídos”, realizado no dia 7 de setembro. As pastorais sociais e muitos movimentos populares passaram desde então a participar desse ato, que se tornou um ato político que ajuda o Brasil a melhor conhecer o Brasil, para que ele vá de fato ao Brasil, através do reconhecimento da cidadania e dos direitos de grande parte de seus filhos/as excluídos/as. Ora, para que isso aconteça, é necessário que o Brazil que não merece o Brasil e o Brazil que mata o Brasil, representado pelas elites nacionais que devoram os recursos do país sem se sentirem Brasil, apesar de sequestrarem seus símbolos, manipulando-os em função de seus interesses, seja de fato impactado por esse grito, deixando-se interpelar por ele.

O 7 de setembro de 2021 tem gerado polêmicas e despertado temores, por causa da convocação que o Presidente da República fez para o povo ir às ruas em favor de seu governo e contra as instituições da República que, segundo ele, o impedem de governar: o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. Infelizmente, a polarização, escolhida pelo mandatário da nação como estratégia para fazer passar os interesses dos grupos que o elegeram e o mantêm no poder, mais que criar e sedimentar o “nós” que constitui uma nação, podendo, inclusive, resgatar e ressignificar os símbolos e as datas que afirmam a nacionalidade e a cidadania, nada mais são que a nova expressão do “Brazil que não merece o Brasil”, do “Brazil que mata o Brasil”. O papel da Igreja neste momento, como tão bem mostrou a “Mensagem do Presidente da CNBB para o dia da Pátria”, não é o de alimentar essa polarização, mas tampouco o de se calar ou o de se omitir. A intenção originária do “Grito dos Excluídos” é justamente a de levar os/as brasileiros/as a conhecerem os Brasis que eles ignoram, menosprezam e excluem. Somente o longo percurso do reconhecimento desses Brasis, que se traduz também em ações que os incluam e os façam se sentir e ser Brasil, poderá fazer emergir uma nação que, de fato, se orgulhe de ser o que ela é, oferecendo às demais nações sua contribuição para que o mundo avance nos processos de criação de uma cultura da amizade e da paz.

A música “Axé”, cantada nos anos 1980 pelas Comunidades Eclesiais de Base do Brasil, poderia, talvez, oferecer o horizonte de esperança para esse momento em que vive o país. Ela fala que “irá chegar” um “novo dia”, “um novo céu”, “uma nova terra”, “um novo mar”, quando “os oprimidos, a uma só voz, a liberdade, irão cantar”. Nessa nova terra “o negro não vai ter corrente” e o “índio vai ser visto como gente”. Junto com o mulato e o branco eles irão “comer no mesmo prato”. Esse horizonte expressa mais um desejo que uma realidade, mas ele deve continuar alimentando a esperança e a ação que acolhem, reconhecem e promovem os/as excluídos/as da cidadania no país hoje.

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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