Customize Consent Preferences

We use cookies to help you navigate efficiently and perform certain functions. You will find detailed information about all cookies under each consent category below.

The cookies that are categorized as "Necessary" are stored on your browser as they are essential for enabling the basic functionalities of the site. ... 

Always Active

Necessary cookies are required to enable the basic features of this site, such as providing secure log-in or adjusting your consent preferences. These cookies do not store any personally identifiable data.

No cookies to display.

Functional cookies help perform certain functionalities like sharing the content of the website on social media platforms, collecting feedback, and other third-party features.

No cookies to display.

Analytical cookies are used to understand how visitors interact with the website. These cookies help provide information on metrics such as the number of visitors, bounce rate, traffic source, etc.

No cookies to display.

Performance cookies are used to understand and analyze the key performance indexes of the website which helps in delivering a better user experience for the visitors.

No cookies to display.

Advertisement cookies are used to provide visitors with customized advertisements based on the pages you visited previously and to analyze the effectiveness of the ad campaigns.

No cookies to display.

O “envenenamento” das palavras

advanced divider

Há seis coisas que o Senhor odeia, sete coisas que ele detesta: olhos altivos, língua mentirosa, […], coração que traça planos perversos, […], a testemunha falsa que espalha mentiras e aquele que provoca discórdia entre irmãos” (Pr 6,16-19).

Geraldo De Mori SJ

No voo de retorno da Grécia, no dia 6 de dezembro, perguntado por uma jornalista francesa sobre a razão de ter aceitado tão rapidamente a renúncia do arcebispo de Paris, o papa Francisco surpreendeu mais uma vez pelo gesto e pela resposta. Ao invés de responder à pergunta, ele apontou o microfone para a jornalista e perguntou-lhe se ela sabia o motivo. Ao responder que não, ele disse que tampouco sabia, mas que “quando as fofocas crescem cada vez mais e afetam a reputação de uma pessoa, essa pessoa não pode continuar governando […]. Isso é uma injustiça. Por isso aceitei a demissão […], não sobre o altar da verdade e sim sobre o da hipocrisia”. Não é o caso aqui de comentar a situação que levou o prelado francês a pedir demissão nem a resposta do Pontífice à jornalista, mas de refletir sobre uma situação que se agudizou nos últimos anos, a da disseminação das falsas notícias (Fake News), não só no âmbito social e político, mas também no âmbito da fé, levando à pergunta sobre a possibilidade e a necessidade da verdade nas relações humanas em geral e nas religiosas em particular.

A questão da verdade está presente em todas as culturas, em geral identificada com a busca da sabedoria, embasando a maior parte dos valores éticos e a busca da justiça, que é inerente à condição humana. No âmbito filosófico, que tanto marcou a cultura ocidental, a questão da verdade irrompeu com a própria questão do ser, embora tenha conotações gnosiológicas, éticas e estéticas. O célebre fragmento de Parmênides, segundo o qual “o ser é e não pode não ser”, inaugura uma compreensão ontológica da realidade, que pensa o ser como permanência daquilo que é. Essa visão é tida por muitos pensadores atuais como algo atemporal e ahistórico, sendo por isso questionada. A ela, porém, se pode atribuir o surgimento da razão conceitual, que busca, através da argumentação crítica, estabelecer o que é de fato a realidade, atribuindo valor de verdade e falsidade a certos argumentos. Daí surgiu a primeira filosofia na Grécia antiga, que buscava dizer qual era o fundamento de tudo o que é, sendo denominada “physis”.

Os sofistas, com outro adágio, “o ser humano é a medida de todas as coisas”, tentaram trazer para o âmbito dos valores o mesmo tipo de argumentação aplicado pelos primeiros filósofos ao cosmos. Depararam-se, porém, com a multiplicidade de opiniões, que levavam à relativização do que se compreendia como ser humano e como valor. Sócrates e Platão, partindo da razão dialógica, vão chegar à necessidade de se pressupor as ideias de verdade, bondade e beleza do ser, condição de possibilidade de todo argumento que expressa realmente o amor à sabedoria. A filosofia posterior vai transformar a verdade, a beleza e a bondade em “transcendentais” do ser, ou seja, é possível distinguir a verdade da falsidade, a beleza da feiura, a bondade da maldade. Grande parte da história das sociedades ocidentais é construída sobre essa convicção.

Para o mundo bíblico também a questão da verdade é crucial. Ela dá origem a uma leitura fundamentalmente ética do conjunto da existência do povo eleito. Isso já aparece nos relatos com os quais o conjunto do texto bíblico se inaugura: o Gênesis. É interessante notar que no primeiro relato, que tem origem na tradição sacerdotal, a dimensão ética e estética são de imediato postas sobre o conjunto do cosmos e da vida que emerge do poder da Palavra. Após cada obra da criação, o narrador diz “E Deus viu que era bom”. Em geral, a maioria das línguas traduzem essa apreciação divina somente do ponto de vista ético, mas, segundo os conhecedores da língua bíblica, o termo que diz bondade é o mesmo que diz beleza. Ou seja, o conjunto da obra criada pela Palavra é belo e bom. Sobre a obra do sexto dia, o ser humano, o narrador observa “e Deus viu que era muito bom”. A leitura canônica, que toma o texto bíblico tal qual é disponível ao leitor, apresenta no capítulo seguinte a criação de Adão do barro e do sopro divino, e o plantio de um jardim, no qual é cultivado todo tipo de árvore frutífera, agradável ao olhar e saborosa ao paladar. Ao colocar o ser humano nesse jardim, Deus lhe diz que ele pode comer dos frutos de todas as árvores, exceto de uma, a do conhecimento do bem e do mal. Aqui, de modo explícito, a questão ética é inserida, com uma lei que é condição de possibilidade da própria liberdade. Por isso, ela não deve ser entendida como interdição, mas como adesão a um projeto divino, figurado na harmonia entre Adão e os demais seres que vivem no jardim, entre ele e a “ajuda” que Deus lhe deu, entre ambos e Deus. A deturpação da palavra divina pela serpente levou à leitura da lei como interdito que impedia a liberdade de realizar-se como obediência ao projeto divino. Jesus, identifica a serpente de Gn 3 com Satanás, a quem chama de “homicida desde o princípio”, “pai de mentira”, “pois nele não há verdade”; “quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio (Jo 8,44). A mentira é vista como fonte do pecado, e produz a divisão entre homem e mulher, o ser humano e a terra, os humanos e o próprio Deus.

Uma das maiores questões da humanidade, colocada na boca de Pilatos no julgamento de Jesus, “o que é a verdade?” (Jo 18,38), merece ser relida por cada geração, sobretudo pelos que se dizem cristãos/ãs. No mesmo evangelho joanino Jesus se diz “caminho, verdade e vida” (Jo 14,6). Ora, a verdade cristã não se impõe pela força. Ela não se identifica com a “verdade” do “mundo”, entendida no sentido joanino, ou seja, como aquilo que se opõe a Deus. Ela aparece de modo emblemático naquele que assumiu de modo mais radical o projeto original de Deus para a humanidade, figurado no início das Escrituras pelo Jardim do Éden como lugar de harmonia, comunhão, realização plena de todas as potencialidades humanas e de toda a criação. A resposta à pergunta de Pilatos é dada na cruz enquanto sinal de entrega até o dom da vida por amor à humanidade e por fidelidade ao Pai. Nesse sentido, associar Jesus e a fé cristã à “verdade do mundo” é corromper a ideia de verdade da fé. Negar a noção de verdade é abrir o mundo a todo tipo de perversões, como o atestam todas as culturas e a história do pensamento filosófico inaugurado com os que intuíram pela primeira vez que o “ser é e não pode não ser”, que ele se manifesta como verdade, beleza e bondade, e se expressa no dom de si de uma liberdade totalmente disponível Àquele de quem provinha.

A mentira não é apenas o oposto da verdade, e ela não só nega a realidade do mundo em tantas expressões de conhecimento, produção de todo tipo de artefato, desde os mais elaborados pela ciência e pela técnica, aos mais simples do uso cotidiano, mas também o que torna uma vida eticamente autêntica, que é a vida baseada em princípios e valores que mostram o outro, em sua pluralidade e diversidade, sempre como fim e nunca como um meio, como tão bem expressou Kant, na Crítica da razão prática. Ao negar a verdade ou ao “envenená-la”, como expressou, de outra maneira, o Papa aos jornalistas, sobre o caso do Arcebispo de Paris, a mentira, em todas as suas tonalidades, nega, no fundo, a própria humanidade enquanto digna de valor e possuidora de uma dignidade inalienável. Muitos dos conflitos pelos quais passa a sociedade atual são, no fundo, fruto do desprestígio da noção de verdade nos muitos campos do saber científico, relacional, comunicacional, que transforma aquilo que é digno de conhecimento, valor, crença, objeto de suspeita, desprestígio, inviabilizando, dessa forma, a convivência civilizada e, no caso das comunidades de fé, toda comunhão.

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

enptes
...
Conteúdo acessível em Libras usando o VLibras Widget com opções dos Avatares Ícaro, Hosana ou Guga. Conteúdo acessível em Libras usando o VLibras Widget com opções dos Avatares Ícaro, Hosana ou Guga.