Bruno Pettersen
Vez ou outra me vejo reassistindo e relendo Darcy Ribeiro (1922-1997). Muitas das entrevistas que ele concedeu ao longo da vida estão disponíveis no YouTube, especialmente aquelas dadas ao programa Roda Viva, da TV Cultura. Poucas vezes também me emociono com declarações sobre o Brasil, mas Darcy Ribeiro fala e escreve tão bem que, pessoalmente, me sinto compelido a lembrá-lo. Neste momento em que escrevo, a grande obra de Darcy, O Povo Brasileiro (1995), está completando 30 anos de sua publicação — justamente um livro que, segundo o próprio autor, levou 30 anos para ser escrito. Antes de falar do livro, é preciso mencionar sua atuação enquanto um “intelectual público”.
Darcy Ribeiro é um caso especial no Brasil de um intelectual público, isto é, alguém que vem de uma robusta formação acadêmica — no caso dele, como antropólogo — mas que participa ativamente de movimentos políticos na sociedade. Em nossos tempos, cada vez mais intelectuais querem participar da política apenas como debatedores, críticos ou apoiadores, mas raros são aqueles que decidem partir para a política real, o corpo a corpo com eleitores, a articulação com os “políticos profissionais” e o debate das necessidades do funcionalismo público. Darcy fez tudo isso ao mesmo tempo. Ele foi Ministro da Casa Civil no governo de João Goulart, Senador e Vice-governador pelo estado do Rio de Janeiro. Como se não bastasse, fundou um modelo muito especial de escolas, chamado “CIEP” (Centros Integrados de Educação Pública), onde o aluno tinha educação em tempo integral, e foi um dos fundadores da Universidade de Brasília (UnB), em 1962. Como legislador, talvez a sua grande obra tenha sido a LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação e que até hoje é a principal lei que regula a educação brasileira.
Além disso, sua atuação acadêmica não foi escassa. Escreveu muitos livros, ensaios e artigos, abrangendo campos da Antropologia, Etnologia, Sociologia e História. Como etnólogo, é importante destacar sua atuação como pesquisador, tendo vivido por dois anos com um povo indígena. Seu trabalho como antropólogo dialogou, em termos acadêmicos, com a importante obra Casa-Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre — um marco dos estudos antropológicos no Brasil. Darcy foi um dos críticos mais ferrenhos da ideia de uma “democracia racial” no país, tese que foi parcialmente fundamentada por Freyre. Como se não bastasse, ainda foi romancista. Suas reflexões sobre a educação também marcam uma parte importante do debate sobre a formação do brasileiro e as relações socioeconômicas presentes no contexto educacional.
A partir disso, posso afirmar que, para mim, ele foi o maior intelectual público brasileiro. Nesse sentido, em breves linhas, em que consiste o mais importante livro dele, O povo brasileiro?
O argumento central desse livro parte da compreensão do que Darcy chamava de uma “genealogia” do povo brasileiro — um povo miscigenado, mas que era diferente de todos os outros, uma vez que esse processo histórico de miscigenação acabou levando à criação de um novo gênero humano, a uma nova forma de ser humano. No entanto, esse contato entre os povos não foi brando, tendo sido profundamente marcado pela violência e pelo extermínio do outro. Talvez a frase mais repetida de O Povo Brasileiro seja justamente a que destaca tais atrocidades que seu exame antropológico revelou sobre a origem do Brasil:
Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós, brasileiros, somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos.
Essa forma de compreender o Brasil se manifesta na noção de vários “Brasis”, com heranças e formações distintas, que precisam ser entendidas como parte do Povo Brasileiro. Nessas múltiplas perspectivas do Brasil, surge um de seus conceitos mais discutidos no livro: o “cunhadismo”. O termo resulta da fusão de uma palavra em tupi (cunhã – mulher) e outra em português (cunhado/a), indicando a relação de aliança estabelecida entre povos indígenas e estrangeiros, por meio da união com uma mulher indígena. Essa prática, inicialmente restrita às relações entre povos indígenas, tornou-se um elemento fundamental para compreender a inserção do estrangeiro na cultura brasileira.
São muitas as formas de compreender a importância dessa obra de Darcy Ribeiro. Mas o ponto que mais me chama atenção é a capacidade deste livro de se configurar como uma obra antropológica inserida em um projeto para se pensar o Brasil. Não é apenas uma teoria abstrata sobre o real, mas um livro que surge do profundo compromisso de Darcy com o país. Só pude conhecer suas obras e suas entrevistas depois de sua morte, em 1997, quando eu tinha 16 anos. Hoje, aos 43, sinto cada vez mais o desejo de ver reais intelectuais públicos que não apenas estruturam profundas obras acadêmicas, mas que também se comprometem com a política real.
Bruno Pettersen é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE