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O ser humano entre a diferença e a igualdade

Marília Murta de Almeida

Em seu artigo do dia 10 de março, aqui neste “Palavra e Presença”, o professor Geraldo de Mori, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, refletiu sobre o que seria a diferença originária, aquela que nos faz mulheres e homens diferentes desde o início. Para tanto, nos lembra dos dois relatos bíblicos da criação. O primeiro, em Gn 1,27-31, fala de um ato criativo de Deus em que homem e mulher são criados juntos e vistos como bons pelo criador. O segundo, em Gn 2,7-25, conta a criação do ser humano em dois atos, primeiro o homem e depois a mulher, para que o homem não esteja só. Instigada por essa reflexão, sigo aqui o mesmo caminho.

Os relatos bíblicos da criação nos dizem, de um modo e de outro, que o ser humano foi criado na diferença. Ou seja, a diferença seria para nós originária, parte inerente do que somos. O que talvez não seja algo banal, como nos aponta, como quem nos quer despertar, Clarice Lispector em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, ao relatar as impressões da personagem Lóri diante de Ulisses, seu companheiro:

Ele era um homem, ela era uma mulher, e milagre mais extraordinário do que esse só se comparava à estrela-cadente que atravessa quase imaginariamente o céu negro e deixa como rastro o vívido espanto de um Universo vivo. Era um homem e era uma mulher.”

Lóri sentiu como um milagre que ela fosse uma mulher e Ulisses um homem; um milagre extraordinário que nos faz lembrar de que o Universo é vivo. Talvez seja preciso pararmos um pouco na leitura deste trecho, pois nos habituamos demais à banalidade de sermos um homem ou uma mulher assim como o outro a nosso lado. Clarice Lispector parece querer nos despertar para a não obviedade deste fato. Imaginemos: poderia não ser assim!

A diferença, dom que nos acompanha desde sempre, nos sensibiliza para a vida que anima o universo. Somos diferentes e isso nos convida à saída de nós mesmos. Todavia, a diferença sexual é intrínseca à espécie. Trata-se de diferença que nos toca de modo diverso daquela já presente entre os outros seres todos e nós. A diferença que me separa dos animais ou das águas dos rios age sobre mim, é claro, mas não como a diferença que há entre mim e o outro humano. Porque, neste caso, há também a semelhança. Como o primeiro homem diz ao ver a mulher: “Eis, desta vez, o osso dos meus ossos e a carne da minha carne! Ela se chamará humana, pois do humano foi tirada” (Gn 2,23, em tradução da TEB – Tradução Ecumênica da Bíblia – que chama a atenção para o significado do nome Adão em hebraico, que é humano).

Essa diferença, portanto, tem lugar na semelhança. Somos humanos ao sermos homens e mulheres. Além disso, se essa diferença é originária porque marcada em nosso corpo, não é a única. Somos humanos e temos peles de tonalidades diversas; somos humanos e nascemos em diferentes pontos do planeta e em tempos diversos; somos humanos e temos diferentes modos de nos relacionarmos amorosa e sexualmente com o outro humano. Todas as diferenças podem agir sobre nós nos lembrando da exuberância da vida diversa, nos apresentando o milagre extraordinário do fato de não sermos idênticos, ou seja, de não sermos fechados em nós mesmos.

Aqui se dá então a necessidade de pensarmos sobre o passo que há entre a particularidade do diferente e a igualdade presente na humanidade compartilhada por todos. A mulher se chamará humana porque do humano foi tirada. A partir de qualquer ponto da inesgotável diversidade humana é possível fazer a travessia do particular ao universal que nos une. Neste sentido, leiamos mais um trecho de Clarice Lispector no mesmo Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres:

Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não-humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fizera um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornara-se o mais ininteligível dos seres onde circulava sangue. Ela e o mar.”

O início do trecho pode nos levar a pensar na mulher, em sua particularidade, como o ser ininteligível. Mas a frase seguinte nos esclarece: mulher, aqui, é sinônimo de ser humano. Nós, que nos habituamos tanto a ler a palavra homem usada no sentido de ser humano, talvez nos espantemos ao ver o uso da palavra mulher neste mesmo sentido. Mas trata-se de perceber a legitimidade do movimento que vai do particular ao universal e que já estava lá na passagem de homem a humano. O chamado agora, na contemporaneidade, é para que entendamos que o mesmo movimento pode e deve se dar a partir de qualquer outro particular. Que quando apenas homem pode ser tomado como universal, está se dando uma espécie de absolutização deste particular como universal.

O uso que Clarice Lispector faz da palavra mulher no trecho citado nos mostra claramente que a universalização deve ser um movimento. E nos abre a imaginação para a compreensão de que o jovem negro morto pela polícia é um como nós, como depreendemos da leitura de sua crônica “Mineirinho”. Na atualidade, é a esse movimento que nos tem chamado também Djamila Ribeiro ao afirmar que é preciso reconhecer a particularidade da qual fazemos parte para nos compreendermos como humanos.

 

Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE.

 

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