Pe. Jaldemir Vitório SJ
O projeto de Jesus, cuja meta consiste em conduzir a humanidade para Deus, passa por um processo acelerado de desconstrução, na medida em que muitos autointitulados cristãos e cristãs, bem como igrejas, grupos, movimentos e lideranças caminham na contramão da sabedoria evangélica. O atual ambiente político-religioso, onde pululam “personalidades cristãs” de todos os naipes, tem pouca sintonia com o Mestre de Nazaré. Veem-se conflitos sectários intermináveis, desrespeito do próximo, às vezes, irmão de fé, considerado inimigo a ser exterminado, defesa de pautas prejudiciais para as minorias (maiorias?) e os descartados da sociedade, contaminação de igrejas com ideologias políticas travestidas de cristãs, líderes religiosos que transformam os altares em palanques, eventos de massa, financiados por igrejas, para promover políticos execráveis e inescrupulosos.
Em passado, não muito distante, na Igreja Católica, surgiram vozes proféticas suficientemente lúcidas, para oferecer critérios ético-cristãos de discernimento, em momentos dramáticos de nosso país, e apontar aos cristãos as pautas de ação esperadas dos discípulos e das discípulas do Reino de Deus. Dentre muitos outros, inclusive de outras Igrejas Cristãs, recordemos as vozes proféticas do episcopado católico: Dom Helder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Aloísio Lorscheider, Dom Luciano Mendes de Almeida, Dom José Maria Pires, Dom Ivo Lorscheiter. A CNBB e suas Regionais, também, se alinharam com entidades defensoras da democracia e dos direitos humanos para lutar por um País com mais respeito à dignidade humana e denunciar as injustiças cometidas contra os fracos e indefesos. Lamentavelmente, as vozes proféticas se calaram ou foram caladas! Uma espécie de inverno ético-profético se abateu sobre nossa Igreja, fazendo-nos sentir “fome e sede de ouvir a Palavra de Deus” (Am 8,11), a nos apontar por onde caminhar.
Entrementes, resta-nos voltar ao Sermão da Montanha (Mt 5–7), onde a catequese mateana concentra uma série de imperativos de Jesus de Nazaré, para quem abraça o discipulado do Reino e se dispõe a vivê-lo com coerência e autenticidade. Eles servem de critério para o discernimento da realidade social, política, econômica, religiosa e cultural, na qual estamos mergulhados, e apontam pistas de ações para quem está decidido a viver sua fé batismal, com qualidade evangélica, em tempos de desmonte do ideal cristão. Vejamos alguns!
- “Busquem, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça, e todas essas coisas lhes serão dadas por acréscimo” (6,33)
Será preciso colocar Deus no centro de todo nosso pensar. E nosso agir deve focar o querer divino, para que se torne realidade, como rezamos no Pai-Nosso: “seja feita a tua vontade, na terra como no céu” (Mt 5,10). A vontade de Deus indica a compaixão e a misericórdia como fundamentos da ação dos discípulos e discípulas do Reino. Tal consciência cria sensibilidade para detectar e denunciar tudo quando vilipendia a dignidade dos filhos e filhas de Deus, a começar pelos últimos, numa sociedade de exclusão. E nos motiva a unir forças com pessoas de boa-vontade e nos engajar na luta por um mundo com mais justiça e igualdade, onde a “imagem e semelhança de Deus” brilhe no rosto de cada ser humano.
- “Vocês são o sal da terra; vocês são a luz do mundo” (5,13.14)
O discipulado do Reino exige compromisso e inserção, num mundo refratário ao projeto de Deus. Será preciso fazer frente à tentação de cruzar os braços, omitir-se, alienar-se, desresponsabilizar-se pelas tragédias humanas que ferem nossa sensibilidade e deveriam questionar nossa condição de cristãos e cristãs. Perde tempo quem se lança à busca de culpados, à caça de bruxas a serem eliminadas e se contentam com discursos vazio. Seremos “sal” e “luz” com nosso testemunho de vida e nossas palavras carregadas de lucidez evangélica a apontar saídas para os dramas em que tantos irmãos e irmãs estão mergulhados. As dimensões gigantescas das tragédias da humanidade não podem intimidar os discípulos e as discípulas do Reino!
- “Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” (6,24)
Jesus encarou o tema da idolatria, ao confrontar os discípulos e discípulas do Reino com a opção necessária entre Deus e o Dinheiro. Dinheiro, nesse caso, significa mais do que cédula, moeda, conta bancária. Diz respeito a tudo quanto assume o papel de absoluto na vida das pessoas. Pode ter a cara de concentração de bens e propriedade (riquezas!), e, também, se encarnar como fama, poder, prazer, luxúria, ideologia, sempre em detrimento do próximo, em benefício do próprio “eu”. A idolatria não se coaduna com a adoração do Deus vivo e verdadeiro. Eis porque se torna incompatível com a fé. Os falsos profetas cristãos são, todos e todas, idólatras! Será preciso muita atenção para não sermos enganados por eles e elas (Mt 7,15-19) e optar sempre por nos deixar conduzir pelo querer do Pai dos Céus e sua infinita misericórdia pela família humana.
- “Tudo quanto vocês querem que as pessoas façam a vocês, façam vocês a elas, pois essa é a Lei e os Profetas” (7,12)
Esse imperativo é conhecido como a “regra de ouro” dos discípulos e discípulas do Reino de Deus. Bastaria se pautarem por ele, e nosso mundo seria bem diferente. O outro se torna parâmetro para meu agir, já que tudo quanto lhe faço corresponde ao que gostaria que ele me fizesse. A oração do Pai-Nosso aplica esse princípio ético, no pedido: “perdoa-nos nossas dívidas, como também nós perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6,12). Ou seja, se quero ser perdoado por Deus, tomarei a iniciativa de perdoar o meu próximo. Quando vemos “cristãos” desejando o mal para o semelhante ou lhe fazendo o mal, temos um exemplo de como não deve agir quem tem compromisso com o Reino de Deus.
- “Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (5,7)
Numa sociedade carregada de violência, de negação do outro e seus direitos, de disseminação de discursos de ódio e intolerância, de guerras cruéis e tantas outras forma de aviltar o outro, os discípulos e as discípulas do Reino são chamados a agir como profetas e profetisas que denunciam a falta de misericórdia e lutam por criar um mundo onde o amor ao próximo e a defesa de sua dignidade, de modo especial, dos oprimidos e marginalizados, seja o norte das relações interpessoais. A revolução da misericórdia se torna uma tarefa irrecusável para quem discerne a história à luz da fé e se pauta pelo ethos evangélico.
- “Amem os seus inimigos e orem pelos que perseguem vocês” (5,44)
Passa despercebido para muitos cristãos e cristãs a cisão da humanidade entre amigos-inimigos, companheiros-adversários, aliados-rivais, nós-eles. Na lógica mundana, os amigos, companheiros e aliados devem ser protegidos e defendidos; ao revés, os inimigos, adversários e rivais devem ser aniquilados. Os discípulos e as discípulas do Reino têm a missão de reverter a espiral da violência, pelo caminho do amor e da oração. Por isso, dispõem-se a amar os inimigos e a rezar por seus perseguidores. Trata-se de uma tarefa superexigente! Só os discípulos e as discípulas verdadeiros a assumem, de coração aberto, e remam contra a maré. Por outro lado, denunciam todo desejo de vingança e extermínio do outro.
- “Não julguem, para não serem julgados; como vocês julgarem, serão julgados e, como medirem, serão medidos” (7,1-2)
A sociedade cindida, ao cultivar o ódio intolerante, tende a promover atitudes antievangélicas de julgamento das condutas alheias, quase sempre, de forma maligna. O preconceito alimenta divisões e as aprofunda. Eis porque o discípulo e a discípula do Reino evitarão pensar mal do semelhante, e se comportar como seus juízes, de modo especial, quando forem adversários e estiverem em campos opostos, por exemplo, no âmbito da religião e da política. A atitude correta segue a direção da benevolência, do bem-querer e da condescendência, mesmo com quem não simpatizamos.
- “Seja o ‘sim’ de vocês, sim, e o ‘não’, não. O que passa disso provém do Maligno” (5,37)
A palavra dos discípulos e das discípulas do Reino de Deus tem total credibilidade. A mentira não faz parte do seu cotidiano, tampouco lhes interessa enganar o próximo, para se prevalecer. Preocupados em falar sempre a verdade e dar testemunho da verdade, sofrem a pressão dos trapaceiros, caluniadores e difamadores, cuja conduta rejeitam por causa da fé. No Sermão da Montanha, Jesus chama de “bem-aventurados” os injuriados, perseguidos e vítimas de mentira, ao lhes imputarem toda sorte de maldades, por causa da fé (Mt 5,11). Quem pertence ao Reino jamais disseminará fake news, tampouco, compartilhará informações (fofocas), sem averiguar-lhe a veracidade. Assim, numa sociedade contaminada pela mentira e desinformação, são chamados a ser profetas da verdade.
- “Vá se reconciliar com seu irmão” (5,24)
A vida reconciliada e fraterna é o diferencial dos discípulos e das discípulas de Jesus. A consciência de serem todos irmãos e irmãs, a família dos filhos e filhas de Deus, impede-os de cultivar preconceitos, fanatismos e inimizades de qualquer tipo, e promover ou incentivar guerras geradoras de ódio e divisão, pensar a sociedade organizada de forma piramidal e hierárquica, com os de cima oprimindo e explorando os de baixo. Igualmente, farão frente aos arrogantes, narcísicos, orgulhosos e soberbos, convencidos de sua superioridade, no trato com os considerados inferiores social, cultural, racial, econômica ou etnicamente. Escolher a fraternidade e a reconciliação como projeto de vida tem, na sociedade em que vivemos, um imenso valor profético.
- “Se o modo de proceder de vocês não superar o dos demais, vocês não entrarão no Reino dos Céus” (5,20)
O estilo de vida dos discípulos e das discípulas do Reino se contrasta, fortemente, com o de quem tem outras pautas para seu modo de ser e de proceder. Há quem pretenda se mostrar cristão por usar vestimentas e adereços exóticos, difundirem devoções descomprometidas, recorrerem a citações bíblicas em suas falas, pertencerem a igrejas, grupos ou movimentos de verniz cristão, se darem o direito de ser juízes implacáveis de quem não pensa e age como eles. O equívoco dessas posturas se faz patente nos frutos ruins – resultados – que produzem (Mt 7,15-20). A novidade do modo de proceder de quem aderiu ao Reino se mostra pelo alto padrão ético de comportamento, pela escolha da misericórdia compassiva no trato com os deserdados da sociedade, pela rejeição da injustiça, da violência, da mentira e de tudo quanto abala as relações sociais. Enfim, o contraste acontece pelo testemunho de vida.
A volta à sabedoria do Reino se torna obrigação para quem se dispõe a caminhar na fidelidade à sua fé batismal. Será preciso nos converter, a cada instante, às fontes de fé. O Sermão da Montanha (Mt 5–7) corresponde a uma síntese precisa e atual do que se espera dos discípulos e das discípulas de Jesus de Nazaré. Num momento em que as vozes proféticas de nossa Igreja estão caladas, será preciso escutar o Jesus das catequeses evangélicas, cujas palavras são um tesouro a ser redescoberto e valorizado. Urge-se ter em mente que, pelo fato de o projeto de Jesus de Nazaré correr o risco de desaparecer, cabe aos autênticos discípulos e discípulas do Reino a tarefa de torná-lo vivo e relevante, até mesmo, para nossas Igrejas.
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PS: O texto estava concluído, quando chegou a notícia da Páscoa definitiva do nosso amado Papa Francisco. Seu testemunho ético-evangélico, em total sintonia com o Jesus de Nazaré do Sermão da Montanha, fez dele, para nossa Igreja e para o Mundo, autêntico Profeta do Reino, a quem devemos dar ouvidos e em quem podemos nos inspirar. “Servo bom e fiel, entra na alegria do teu Senhor!” (Mt 25,21). RIP!
Jaldemir Vitório é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
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