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O sonso e o doido

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Marília Murta de Almeida

Clarice Lispector, em sua crônica “Mineirinho”, publicada no volume Para não esquecer, e construída em torno do episódio real do assassinato de um bandido pela polícia, o Mineirinho, desenvolve duas figuras que muito nos ajudam a pensar, ainda hoje, sobre como temos nos organizado socialmente. São elas o sonso e o doido.

O sonso é aquele que descansa tranquilamente em sua casa cercada de proteção e conta com a retaguarda de uma justiça que garante seus direitos, principalmente o direto à propriedade privada. Justiça que “vela o sono” dos “sonsos essenciais”, que, afinal, somos todos nós. Nós que “dormimos e falsamente nos salvamos” enquanto, lá fora, mata-se. Nós que descansamos enquanto alguém como Mineirinho vive por nós a nossa violência, a violência que faz parte de nós, seja a que poderíamos praticar ou a que poderíamos sofrer. Nós que nos separamos radicalmente de Mineirinho, e deixamos a ele, somente a ele, a violência que também é nossa. Nós que com ele não nos misturamos e que vivemos sob a guarita de uma justiça que vela por nós enquanto deixa a descoberto gente como ele. Bandidos são os outros, nunca nós, os sonsos essenciais.

O doido é o que grita por uma justiça que seja outra, que seja, ela própria, “um pouco mais doida”. Uma justiça que nos permitisse ver a nós próprios em Mineirinho. Que, diante de seu corpo morto no asfalto da cidade, nos lembre de dizer, afinal, “também eu”, como a nos lembrar de que poderia ser um de nós na pele daquele que matou e morreu. E que permita a mim que, ao me ver no corpo morto do bandido no chão do asfalto, veja nele e em mim mesma a fonte da vida, a grama perigosa de radium, o “grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador”. A justiça doida não me separa de Mineirinho na medida em que vê em mim e nele o mesmo grão de vida. O grão que nele foi pisado e se fez medo e violência – e que assim poderia ter sido também em mim.

A justiça doida seria uma “justiça prévia”, capaz de pressentir em cada ser humano a mesma fonte. Justiça capaz, portanto, de compreender o violento como um de nós. O doido, que procura por essa justiça, não descansa na justiça dos sonsos, porque se sabe também capaz do crime do bandido – “feito doidos”, nós nos reconhecemos nele.

Essa justiça não permitiria que o policial, como um justiceiro, matasse em seu nome, porque trataria de proteger também a ele. Essa justiça seria ancorada na “primeira lei”, aquela que diz: “não matarás”. Lei que ecoa o mandamento bíblico e que nos protege de morrer e de matar. O policial, em obediência à primeira lei, não mataria. E assim Mineirinho não morreria. E o policial não praticaria seu crime particular, o que foi “longamente guardado”. Não cairia na escuridão humana de se tornar aquele que mata. Não destruiria a vida do outro que poderia ser a sua.

O sonso, em seu medo, se refugia na defesa de sua casa, no medo de ver desmoronar o edifício em que aprendeu a viver. Mas a escrita de Clarice Lispector nos lembra, e com isso nos recoloca na trilha da esperança, de que “embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida”.

O movimento dessa pequena crônica tem atualidade surpreendente e parece nos dizer diretamente sobre o mundo em que ainda vivemos. O movimento do despertar da consciência que o texto descreve, na sequência dos tiros recebidos por Mineirinho, parte da figura do sonso e da justiça que vela por seu sono e chega à figura do doido e da justiça prévia por ele buscada, como num trânsito do medo à esperança. Parte do medo de alguém que pede que lhe velem o sono e atinge a esperança daquele que aceita a loucura de se ver no outro que mata. Esperança que não teme ver cair a casa, pois confia no terreno que a sustenta e em sua capacidade de reconstruir.

A possibilidade, cada vez mais longínqua, de reconstrução do mundo de valores em que vivemos, parece nos acenar neste escrito de décadas atrás, como a nos lembrar da existência perene do terreno por baixo das construções que edificamos. Como a nos forçar a retomar a loucura capaz de nos pôr a sonhar e projetar um outro mundo, aquele em que radicalmente se cumpra o mandamento: não matarás.

Mundo, portanto, em que nenhuma forma de necropolítica teria lugar, e em que o medo não seria o imperativo primeiro a comandar nossas ações, e a nos forçar à separação excludente entre nós e eles. Nós e eles nos viveríamos como humanidade conjunta em suas diferenças, e a vida que é o grão primordial que nos move nos uniria impedindo o desenrolar do impulso destrutivo.

Clarice Lispector, em choque diante dos treze tiros que tiraram a vida de um bandido e brilharam nas manchetes dos jornais, nos deixa o legado de um texto que funciona como um grão de vida para o leitor que tem a chance de, também em choque, despertar.

 

Marília Murta de Almeida é professora no Departamento de Filosofia da FAJE.

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