Padre Alfredo Sampaio Costa, SJ
Neste mês vocacional, queremos repropor uma intuição fundamental de Inácio nos seus Exercícios: qualquer que seja nossa vocação particular, todos e todas somos chamados a ser MAIS! Essa experiência Inácio viveu e percebeu naqueles que ele acompanhava e com quem conversava. Ela se baseia no dinamismo inesgotável do desejo humano que sempre aspira a mais, em um processo infinito.
Para optar pelo “Mais”, é preciso ser livre interiormente: Não é fácil em um mundo repleto de possibilidades e opções nem sempre conformes o Evangelho, perceber onde se insere o “mais” que devemos sempre almejar em cada uma das nossas escolhas e decisões. Facilmente podemos nos perder no emaranhado de propostas e na complexidade das nossas motivações e condicionamentos externos e interiores. Inácio, a partir da sua própria experiência, conhecedor da psicologia humana, não inicia propondo o “mais”, que poderia sem uma base adequada beirar os limites da “utopia” irrealizável. Concreto e realista, ele parte da necessidade que temos de nos fazermos “livres interiormente”.
A liberdade interior como disponibilidade: Inácio no Princípio e Fundamento apresenta o ser humano como um ser cuja existência inteira é devida a um Deus Criador em vista de quem ele existe sobre a terra. Diante das coisas, que Inácio sabe ser o principal polo de atração e de apego – hoje mais do que nunca num mundo repleto de possibilidades e de consumismo exacerbado – ele afirma que o homem pode usar das coisas: este direito lhe é dado, mas é um direito que implica ao mesmo tempo o poder de deixá-las. A razão que nos leva a ter essa atitude despojada, livre, em relação a tudo e a todos é exatamente a imagem de Deus que Inácio descobriu na sua vida: que Deus está sempre ao mesmo tempo – de modo paradoxal – profundamente presente em cada coisa e sempre para além de tudo. Portanto, Deus é sempre “maior”, “mais”. Por conseguinte, deter-nos e apegar-nos a algo seria interromper a nossa caminhada rumo ao encontro e à descoberta desse Deus nas nossas vidas.
Quando Inácio diz que “é preciso tornar-se livres interiormente (ele usa o termo “indiferentes” para indicar isso!) ele está alertando para o fato de que ainda não o somos, ou o somos muito pouco, e é preciso que nos tornemos assim. A liberdade interior é um caminho longo: não é algo que uma pessoa possui totalmente ou não. Pode existir em uma certa medida, seja quanto à intensidade, seja quanto à área das coisas, diante das quais se exercita. Ao início – em todo o caso – é uma liberdade imperfeita[1], ou, se preferirmos, “em crescimento”. Não acabaremos jamais de nos tornarmos desapegados de tudo e de todos, mas a repetição do ato inicial gerará pouco a pouco um habitus caracterizado por um estado de disponibilidade.
“…em modo a não desejar da nossa parte mais saúde que enfermidade, mais a riqueza que a pobreza, mais a honra que a desonra, mais a vida longa que a breve, e assim em todo o restante,…” (EE 23)
Chama a atenção no texto a referência explícita ao desejo… trata-se de um “não desejar”. E a recorrência do “mais” que puntua cada elemento da frase: “não desejar mais” isso que aquilo. A dinâmica do “mais” se insere pois dentro do impulso do desejo, que na verdade não é anulado (não se trata de não desejar mais nada), mas é um desejo que precisa ser discernido em cada situação concreta.
É interessante notar como os conceitos aparecem em pares e contrapostos tal qual no texto inaciano, onde o “não querer” manifesta a extensão da sua negatividade graças a 4 pares de contrários: saúde-enfermidade, riqueza-pobreza, honra-desonra, vida longa- vida breve. O primeiro e o quarto par dizem respeito a coisas que estão entre as que são mais independentes da minha vontade (viver com saúde ou não, ter uma vida longa): “saúde-enfermidade” constitui um estado puro de fato, um presente que emerge de um passado biológico, individual e familiar sobre o qual eu não possuo domínio algum. “Vida longa / breve” aponta para o futuro, que não me pertence ainda. Talvez por esse fato, saúde e vida longa se tornam facilmente objeto da nossa maior preocupação. Pedir à nossa liberdade para “fazer-se indiferente” diante a estes dois pares é, portanto, elevar-se de uma vez acima da nossa condição carnal e ao mesmo tempo é pô-la em presença da sua condição frágil e mortal. Os outros dois pares intermediários – riqueza/pobreza, honra/ignomínia, ao contrário, estão entre as coisas que dependem ao máximo do meu querer, não tanto para obtê-los, mas no que toca à sua busca. Enquanto os outros dois tocavam a minha relação com o mundo natural, estes ao contrário abrem a minha existência ao mundo social e histórico.
Um eco dessa atitude podemos encontrar em um trecho da Gaudium et spes”:
“… Todas as atividades humanas, que são colocadas cotidianamente em perigo pela soberba e pelo amor desordenado a si mesmos, devem ser purificadas e levadas à perfeição pela cruz e ressurreição de Jesus Cristo. Redento por Cristo e feito nova criatura no Espírito Santo, o homem pode e deve amar as coisas criadas por Deus. Recebe-as de Deus, e as guarda e as honra como se saíssem das mãos de Deus. Agradecendo por elas ao Benfeitor e usando das criaturas em pobreza e liberdade de espírito, o homem é imerso na verdadeira posse do mundo, como quem não tem nada e ao contrário tudo possui: “Tudo é vosso! Mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus! (1 Cor 3,22.23)” (GS 38).
“Desejando e escolhendo somente o que MAIS nos leva ao fim para o qual fomos criados”
O objetivo primordial dos Exercícios é criar no exercitante uma atitude permanente de decisão pelo amor, mas um amor apaixonado, que incita a desejar entregar-se mais e melhor. A distinção entre “desejando” e “escolhendo” não é em nenhum modo inútil. Ela se impõe, uma vez que se trata sempre de um ser humano, temporal, cuja liberdade se realiza somente progressivamente. Será preciso, de fato, esperar quase duas semanas para chegar ao momento decisivo da eleição.
Ao final do texto do Fundamento (EE 23), o pensamento inaciano dá uma guinada inesperada e magnífica: a liberdade (desapego) com relação a toda a criação chega imediatatamente a significar, de fato, que se deve proceder “somente desejando e escolhendo aquilo que mais nos conduz” a esse fim.
Subitamente então se passa da indiferença a uma preferência, da disponibilidade em espera a uma eleição[2]. A energia fundamental que pode mover ao “magis” é o amor. O magis da docilidade à vontade divina, assim como o magis da relação positiva do homem com as coisas criadas, é o horizonte inexaurível da liberdade e do apelo à comunhão com um Deus sempre Maior que no seu amor providente deseja entregar-se por completo ao homem[3].
Balthasar insiste muito sobre o “magis” inaciano. Explica que se a perfeição total à qual Inácio quer conduzir o homem consiste no agir “em vista da glória sempre-maior de Deus N.S.” (EE 185), isso se dá não somente porque ela corresponda à perfeição maior da sua alma, mas, mais radicalmente, do fato que Deus mesmo é o “Sempre-maior”:
“O comparativo (‘más’, ‘mejor’, etc) é como uma crescente abertura para o alto, e expressa o pensamento do fundador da Companhia de Jesus que, repugnando todo superlativo estático, vê no “não-fechamento” do magis o traço distintivo da realidade divina (Deus semper major), e ao mesmo tempo aquela da realidade criatural diante de Deus (ad majorem Dei gloriam)”[4].
- Paulo insiste no fato que a glória de Deus chega a um cumprimento “além de toda medida”[5] de si na liberdade criada. É S. João quem mostra por excelência, no comparativo aberto, a forma imanente da figura divina na sua manifestação como amor, oferecendo deste modo a teologia mais em harmonia com o verdadeiro espírito inaciano:
“A evocação ao princípio do sempre-mais é presente já nos escritos de João. É próprio dele ao mesmo tempo uma inexorabilidade que nos pontos aonde parece ter tocado o vértice, remete cada vez a um sempre-mais-alto, e uma indiferença que considera o maior (e um maior nunca terminado, dirigido para o alto) como o óbvio pressuposto, aliás como a forma íntima da realidade que se revela”[6].
Assim, prossegue Balthasar, no evangelho joanino, quando Natanael pensa ter tocado o vértice de toda revelação possível para um hebreu, escuta da boca de Jesus: “Verás coisas maiores do que estas!” (Jo 1,50). Quando o testemunho de João Batista pareceia ser o mais forte do que se poderia dar de Jesus: “Eu tenho um testemunho que é maior do que aquele de João”, onde é o Pai que dá testemunho de Jesus como aquele que o enviou (Jo 5, 36). Mas estas duas obras maiores serão superadas por aquele que crê que o Filho sobe ao Pai e que o Deus trinitário operará na Igreja: “As obras que eu faço, as fará também ele ( o fiel) e as fará ainda maiores” (Jo 14,12). No diálogo com a mulher samaritana e com os judeus, a presença de Jesus transcende sempre o máximo de qualquer possível comparação: “De onde tiras a água viva? Por acaso eres maior que nosso pai Jacó? (Jo 4,11s). “Eres maior que nosso pai Abraão?… Quem pretendes de ser? ( Jo 8,53). Mas Jesus responde que ele não glorifica a si mesmo e remete ao mistério sempre maior da sua origem: “O Pai é maior do que eu” (Jo 14,28).
Inácio orienta a idéia escriturística e tradicional da glória e louvor de Deus para o mistério insuperável sempre-maior de Deus. Rahner, no seu livro “Meditações sobre os Exercícios Espirituais de Santo Inácio”, desenvolve valiosas reflexões sobre o nosso tema: A essência íntima da indiferença implica, por outra parte, a sua superação em uma decisão pelo “mais”. Assim, o “tanto-quanto” da indiferença deve ser superado pelo “o que mais conduz ao fim” da decisão que a Deus cabe exigir. Rahner chama também a atenção que nem sempre o “magis” implicará uma atitude heróica. Muitas vezes perdemos o foco e nos desviamos da real intenção inaciana ao propor o ideal do Magis como algo grandioso e difícil de ser alcançado. O que se trata sempre é de mostrar que :
“Deus é sempre o Maior. O que nos é pedido é que permaneçamos sempre despertos e vivazes, sem nos agarrarmos egoisticamente a uma só direção […]. Trata-se de permanecermos ágeis e prontos para qualquer chamado de Deus. […] A indiferença [inaciana] é precisamente o contrário da indolência e da apatia […] A oração de Jesus no Horto nos mostra com uma grande clareza que não havia nada de apatia no Senhor, quando aceitava a inapelável ordenação de Deus e a fazia o centro da sua vida[7].
Que possamos entrar cada vez mais nessa dinâmica crescente do Amor que nos atrai a Deus e nos leva a amar a todos e a todas, especialmente os mais necessitados. Pois é a experiência de sermos amados e amadas que nos levará a não desistir do Amor e irá nos tornando cada vez mais livres e desapegados para melhor servir!
[1] Cf. Sergio RENDINA, Itinerario degli Esercizi Spirituali, Edizioni ADP, Roma 1999, 33.
[2] Jacques LEWIS, Conocimiento de los Ejercicios Espirituales de San Ignacio, Sal Terrae, Santander 1987, 114.
[3] Cf. Santiago ARZUBIALDE, Ejercicios Espirituales de San Ignacio. Historia y análisis. Sal Terrae / Mensajero, Santander /Bilbao 1991, 80-81.
[4] Hans Urs VON BALTHASAR, Postface de Ignatius Von Loyola, Die Exerzitien, Josef Stocker, Lucerne 1946, 105.
[5] Paulo insiste sobre este termo (hyperballon, hyperbole) : 2 Cor 3,10; 4,7.17; 9,14; 11,23; Ef 1, 19; 3,19; cfr. as outras numerosas palavras compostar com hyper- 2 Ts 1,3; Ef 3,20; 1 Ts 3,10; 5,13; Fl 3,8; 4,7; Rm 5,20; 2 Cor 7,4; 1 Tm 1,14. Estas variações expressam claramente o sempre-maior, insuperável, da revelação divina e da graça.
[6] Hans Urs VON BALTHASAR, Teodrammatica, Vol. II: Le Persone del Dramma. L’uomo in Dio, 125.
[7] K. RAHNER, Meditaciones sobre los Ejercicios de San Ignacio, Herder, Barcelona 1977, 27.
Pe. Alfredo Sampaio Costa, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE