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Paixão de Cristo, Paixão do mundo

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Alfredo Sampaio Costa SJ

Tocamos aqui um aspecto essencial da consideração dos mistérios da Paixão e Morte de Cristo: não se pode contemplar a paixão de Jesus isolando-a da paixão de seus irmãos mais pequeninos. Jesus continua padecendo hoje em seus membros. A “dor, sentimento e compaixão, porque o Senhor vai à Paixão por causa de meus pecados” tem que projetar-se sobre a dor no mundo, hoje. Ainda que isso pareça evidente, na prática não é vivido desta maneira. Uma coisa é acompanhar a procissão da Sexta-feira santa, profundamente comovidos, bem outra é viver uma solidariedade efetiva e afetiva com os que sofrem hoje!

Pedir dor com Cristo doloroso, angústia com Cristo angustiado, lágrimas, pena interna de tanto sofrimento que Cristo passou por mim” (EE 203) não é um apelo sentimental e alienado, mas indica uma sensibilidade que deve levar-nos a compadecer com a dor dos pobres e a injustiça atual. Num mundo onde reina a frieza e indiferença, onde nos acostumamos com boletins de mortes crescentes, a manchetes de desastres naturais, é preciso apelar na oração a uma sensibilidade encarnada.

a) Contemplar um corpo que sofre por amor (EE 195):

Interessante lembrar que sempre que, nos Exercícios, somos convidados a contemplar a humanidade, ela está vivendo um momento de grande sofrimento. A Contemplação da Encarnação, marco e modelo de todas as que se seguem, convida-nos a nos colocarmos na perspectiva da Santíssima Trindade que, do alto, contempla o mundo. O mundo é apresentado na sua crua realidade de perdição e sofrimento (choro, violência, morte). E a Trindade reage a essa realidade, enviando o Verbo para salvar a humanidade.

Ao contemplar os mistérios da Paixão e Morte de N. Senhor, na Quaresma, damos continuidade a essa dinâmica. O objeto de atenção e consideração é a humanidade de Jesus observada no sofrimento e padecimento do seu corpo e do seu espírito, física e moralmente. A atenção contemplativa centra-se sobre a humanidade sensível, revelando que o caminho sem fim de imitação-identificação passa necessariamente pela concretização de um corpo humano limitado. A contemplação desse corpo que sofre por causa da fidelidade no amor é que nos assinala a divindade e seu amor por nós.

Certamente cada um de nós poderia evocar muitos rostos de pessoas que encarnam essa capacidade de sofrer-com, de amar e de renunciar a si mesmos para se dedicarem aos demais que sofrem. Estas pessoas encarnam, visibilizam e expressam o sentido profundo da Paixão de Nosso Senhor que segue carregando a cruz.

Uma interrogação que é preciso encarar com seriedade é esta: Como lidamos na vida com a questão da limitação e do sofrimento? Nossa e dos que nos rodeiam?

Rezar a Quaresma é abrirmo-nos cada vez mais ao que se passa ao nosso redor. A contemplação da Encarnação apontava a comunhão definitiva de Deus com a humanidade. Os mistérios da encarnação e da paixão se acham intimamente ligados, manifestando a plenitude incondicional do amor de Deus por nós, num caminho progressivo de impotência que o Todo –Poderoso percorre desde o seu nascimento.

É interessante recordar um pormenor que Inácio coloca nos EE e que encontra aqui seu sentido. Na contemplação do Nascimento de Jesus (EE 116), Inácio escreve: “Olhar e considerar o que fazem, como caminhar e trabalhar, para que o Senhor nasça na maior pobreza e, depois de tantos trabalhos, passando fome e sede, calor e frio, injúrias e afrontas, morra na cruz. E tudo isso por mim”. Já ao contemplar o Nascimento se vislumbra o destino do Senhor, e tudo o que Ele passar, será por mim (= pela humanidade). A paixão não é um acontecimento fortuito e fatal, mas um gesto livremente escolhido que se desdobra em vários episódios que vão revelando na humanidade sofredora de Jesus o caminho de comunhão com o Deus da vida. Jesus padece no contexto do padecimento da humanidade, como ser plenamente humano que quis ser. A paixão e a cruz são consequências últimas do movimento identificador da Encarnação, e do modo concreto escolhido por Deus para a Redenção. Jesus comunga com a condição humana e assume seu destino; por isso sofre e morre.

Rezar a Quaresma é tomar a sério a humanidade, assim como o Senhor o fez. Ele não brincou de ser homem, e rejeitou qualquer privilégio por causa de sua condição divina. Inácio escreve que Jesus quer padecer por nós, seguindo a própria palavra do Senhor que afirmou: “Minha vida ninguém a tira. Eu a entrego livremente” (Jo 10,18) e ainda “Desejei ardentemente comer esta ceia” (Lc 22,15-16). O que significa este “querer padecer” do Senhor? Como é possível alguém querer padecer? O sofrimento é algo que nós queremos evitar, a todo custo! Podemos encontrar alguma motivação que torne razoável alguém “querer padecer”?

Jesus “quer” padecer porque deseja se identificar com todo ser humano, com tudo que for humano. Contemplar como esse anelo profundo de Jesus vai se dando, ao longo dos mistérios da Paixão e Morte, conduz-nos a acolher, também nós, todo o “peso” de nossa humanidade, sem busca de isenções ou privilégios; e a aceitar de modo particular nossas “passividades” e “diminuições” (nossos limites e imperfeições).

A Quaresma é um tempo privilegiado para aprofundar nossa intimidade com o Senhor. É a contemplação da Paixão do Senhor e, simultaneamente, a interiorização do que é contemplado. É preciso que saibamos situar nosso padecimento no contexto dos sofrimentos de Cristo, e fazer de nosso sofrimento uma experiência de solidariedade com a humanidade sofredora.

Jesus “padece” ao assumir a condição concreta de humanidade, “na humanidade” que escolhe. A encarnação é um esvaziar-se, para assumir nossa condição humana. Para S. Inácio, a Paixão começa já no Nascimento (EE. 116 e 206). É o Jesus “pobre e humilde”: o do Rei Eterno (EE. 95), o das Duas Bandeiras (EE. 146-147), o do Terceiro Modo de Humildade (EE. 167), que vai adiante e nos precede.

A Paixão de Jesus é a culminação de uma maneira de assumir a condição humana e de entender a vida; implica um assumir esse caminho de esvaziamento e nenhum outro… Rezar esses mistérios nos ajudará a perceber como nos situamos diante do sofrimento pelo qual passam tantos e tantos irmãos e irmãs, sem ter quem os socorra.

Rezar a Paixão de Jesus se converte num chamado ao realismo em nosso caminho de seguimento, a assumir as consequências da maneira de entender a vida e de viver de Jesus. Um chamado a “permanecer” no caminho, e a assumir os custos da autêntica solidariedade com Jesus e com os pobres, que nunca é inócua ou barata. Jesus “quer padecer” porque está disposto a chegar até às últimas consequências em sua aposta pela humanidade: não quer descer da Cruz. A aposta de Deus pela humanidade, encarnada na Cruz de Jesus, é aposta até o extremo, não se desdiz de si mesma no momento do sofrimento, chega até o final…

O que somos chamados a contemplar nesse tempo: não se trata somente e nem exclusivamente de ficarmos agarrados ao sofrimento, em um dolorismo sem sentido. Trata-se de enxergar, para mais além da dor, o amor sem limite e sem medida, tão incondicional, tão imerecido… Se queremos medir de certo modo a autenticidade da nossa oração durante esse período, teremos que ver como anda a nossa gratidão e reconhecimento diante do Amor de Deus!

A partir desse agradecimento, somos chamados também a uma entrega sem limite e sem reserva e a manter nossa aposta por Deus e suas criaturas, por Jesus e seu Evangelho, até o final: a manter-nos nela, quando, por tantas razões, parece uma aposta a fundo perdido.

b) Como Deus pode querer se esconder de nós?

Santo Inácio pede que consideremos como, na Paixão, a Divindade se esconde e Jesus sofre na sua humanidade (EE 196). Essa consideração de Inácio causa inquietação e escândalo a muita gente. Como Deus pode se esconder quando mais se espera Dele que se mostre? E por que se esconde? São questões existenciais muito fortes que pedem uma resposta.

Questionamentos semelhantes foram feitos ao longo da história com relação à Encarnação do Verbo: por que a Trindade optou por enviar o Verbo na carne em pobreza e não manifestando de uma vez por todas sua glória e poder? Pareceria escandaloso crer em um Deus sem-poder!

Ora, quanto mais se oculta a onipotência, mais aparece o rosto humano de Deus, manifestado nas estruturas frágeis próprias do humano. Por força de seu amor, o Onipotente converte-se em “não poder”, exposto às mediações humanas. Consideremos isso detidamente: o que nos aproxima mais dos demais: quando somos frágeis como eles (e por isso entendemos o que estão passando) ou quando queremos aparentar força e superioridade (e acabamos por faze-los se sentir ainda mais fracos)?

Importa perceber que não é o sofrimento que nos aproxima de Cristo, mas é Cristo Nosso Senhor quem, com seu sofrimento e morte, nos salva ao fazer seus os nossos sofrimentos. Inácio captou isso muito bem quando insiste que o pedido de graça seja pedir “dor com Cristo doloroso” e não simplesmente pedir dor (o que seria masoquismo inaceitável!).

Na proposta que S. Inácio faz para contemplar a Paixão de Jesus, a Divindade se esconde renunciando à sua “onipotência”: “poderia destruir a seus inimigos, e não o faz” (EE. 196), e em seu lugar aparece a impotência, a debilidade, a vulnerabilidade do Amor… A onipotência se oculta na humanidade deixada padecer, mas é esta que revela a força do amor e da misericórdia de Deus.

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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