Pesquisar
Close this search box.

Política e Melancolia?

advanced divider

Carlos Roberto Drawin

Ao formularmos o título desta breve reflexão, nele introduzimos uma interrogação a indicar certa dúvida na conjunção das palavras “política” e “melancolia”.  Afinal, podemos perguntar, o que poderia aproximar fenômenos tão díspares? A política, assim a encaramos em nosso quotidiano, é a atividade de uma categoria específica de indivíduos, aquela dos “políticos profissionais” que povoam os noticiários, quase sempre com suas negociações obscuras, discursos enganosos e acordos escusos. Não os vemos com bons olhos porque suas ações parecem estar a serviço de seus interesses particulares, voltados para a ambição de poder do seu grupo ou partido e para o aumento de sua riqueza pessoal. E a melancolia? Palavra comumente associada ao desânimo e ao abatimento, pode tornar-se, quando intensa e persistente, na doença amplamente disseminada e mais conhecida como depressão. Todos nós já tivemos algum contato com ela em nossas famílias e amigos e em nós mesmos quando, às vezes sem saber porquê, acordamos com o humor alterado e pintamos de cores sombrias as condições do presente e as perspectivas do futuro. O que poderia, então, aproximar a satisfeita desfaçatez dos políticos com a funda tristeza dos melancólicos?

Mas em algumas ocasiões, naqueles momentos de maior decepção com o curso dos acontecimentos e impactados pelas notícias e imagens continuamente recebidas, não podemos considerar como melancólica a situação política do país e do mundo? Estaríamos usando apenas uma expressão casual ou ela revelaria uma conexão mais íntima? Ao avaliarmos como inadequado o comportamento dos governantes em geral o fazemos a partir da pressuposição da diferença irredutível entre interesses individuais e bem público. Isso não é surpreendente, pois toda vez que emitimos um juízo, o baseamos de modo implícito ou explícito em algum critério ideal ou normativo: ainda que as coisas sejam assim, elas não são como deveriam ser. Contrapomos o ser e dever ser. Se nós apenas percebemos o que as coisas são e não mais do que isso, de onde provém essa contraposição? Essa difícil questão levou a tradição filosófica propor a ideia de “consciência moral”, ou seja, mesmo quando nós estamos inteiramente dedicados às nossas tarefas do dia a dia, procurando a todo custo satisfazer as nossas necessidades e alcançar os nossos objetivos profissionais e financeiros, algo em nós nos adverte para não ultrapassarmos determinados limites. Essa advertência que nos habita como uma espécie de tribunal interior é justamente a experiência da consciência moral. Esse tribunal, porém, não é regido pelas leis externas cuja transgressão nos impõe sanções, mas é, antes, um tribunal regido pela liberdade. Por isso, apesar de nossa consciência nos sinalizar de que não estamos agindo bem, podemos reagir às suas advertências dizendo “dane-se”: eu sei que não deveria agir desse modo, mas vou fazer assim mesmo.

Tudo fica bem mais complicado se nós generalizarmos esse comportamento e aceitarmos que todos deveriam fazer o mesmo e agir segundo as suas conveniências. Essa atitude, às vezes resignada, às vezes cínica, é insustentável e não vai além de uma retórica mais ou menos sofisticada. Não apenas porque o caos se instalaria e acabaria por nos prejudicar gravemente, mas também porque de alguma forma, mesmo de modo obscuro e confuso, traduzimos em nossa atitude, resignada ou cínica, a aspiração por uma ordem social mais justa e solidária e se não abrigássemos em nosso coração resquício algum dessa esperança perderíamos o sentido de nossas vidas.  Se assim é então a perda da consciência moral deixa de ser um trunfo do egoísmo, do individualismo possessivo e converte-se em fracasso existencial e em paralisia psíquica. Sublinhemos a palavra “perda” para retornarmos à ideia de melancolia.

Atualmente, é mais comum falarmos de depressão ao invés de melancolia. A palavra é extensamente disseminada em decorrência do caráter epidêmico da doença, cujos números assustadores a torna um imenso desafio para os profissionais de saúde.  Aqui, no entanto, ao falarmos preferencialmente em melancolia, deixando de lado a sua possível superposição em relação à doença depressiva, queremos enfatizar uma condição existencial que, desde a antiguidade, fascinou não apenas médicos, mas também poetas e pensadores. Num ensaio brilhante, Freud relacionou a melancolia à perda de um objeto, podendo este ser uma pessoa que morreu, uma separação amorosa, uma posição social, uma crença, um objetivo, um ideal.  Com a perda sofrida, dizia Freud, o Eu mergulha em si mesmo, se afasta dos outros objetos e atividades para se entregar à elaboração do luto. Este é um processo necessário de cura, de cuidado com a nossa própria humanidade. Talvez possamos metaforizar o processo do seguinte modo: como quando enfiamos a mão em um espinheiro sentimos dor, mas, depois, passado o primeiro choque, temos de retirar os espinhos cuidadosamente para que a mão possa novamente tocar nas coisas, reencontrar outras mãos e cuidados. O luto pode ser mais ou menos demorado e quando não se processa convenientemente produz o estado melancólico crônico caracterizado por uma perda aparentemente irreversível.

Ora, a melancolia pode se referir a um ou outro objeto específico e próprio a um sujeito determinado, mas também à perda de um ideal suficientemente forte, abrangente e consistente, capaz de nos consolar e nos sustentar nas dificuldades da vida em comum. Isso ocorre, por exemplo, quando diante dos conflitos do presente os enfrentamos buscando recursos na sabedoria do passado e ânimo nas potencialidades do futuro. Quando essas portas se fecham, os impasses tornam-se esmagadores, nos lançam num luto interminável e nos afundam num individualismo vazio e entediado apenas remediado, vez por outra, por gozos momentâneos.

A política é a arte da vida em comum e esta requer certa contenção dos nossos impulsos, a moldagem dos nossos afetos, a persistência de nossos compromissos, o discernimento de nossas escolhas. Todos esses esforços foram designados como virtudes pelos filósofos clássicos, pois não eram simplesmente bons sentimentos, sujeitos à variação do humor, mas disposições longamente trabalhadas e resultantes da educação moral. Numa época desmemoriada em relação ao passado, descrente em relação ao futuro e devorada pelo consumo do presente onde poderíamos encontrar o tempo e o espaço necessários ao cultivo das virtudes? E sem elas como poderíamos nos empenhar na construção da vida em comum, sem a qual não conseguimos olhar para além dos nossos sofrimentos e desamparos? Ao abandonarmos a fé  na política como proposta de um destino partilhado o luto é bloqueado e caímos facilmente prisioneiros da melancolia de uma perda inconsolável.

Carlos Roberto Drawin é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

...