Reconciliação

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Marilia Murta de Almeida

Neste tempo da quaresma somos chamados a refletir e viver a reconciliação. Certamente a cada um cabe caminhar por um campo próprio ao pretender atender a esse chamado. Para cada um a palavra reconciliação evoca memórias próprias. Dúvidas, impossibilidades, perplexidades ou, ao contrário, alegrias.

Ao sermos chamados, podemos imediatamente nos ver como o agente, aquele que deve buscar o outro para a reconciliação, como que à escuta de Jesus mesmo: se tens alguma diferença com um irmão, vai lá e trata de reconciliar-se (Mt 5,23-24). Mas podemos também ser levados a escutar internamente as reconciliações que vivemos e que parecem não ter sido causadas por nós mesmos ou pelo irmão com quem nos reconciliamos. Algo que simplesmente nos acontece e que nos abre à vida como num novo nascimento.

Clarice Lispector nos oferece algumas imagens de reconciliações. Em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, a protagonista Lóri empreende uma longa travessia que pode ser percebida como a passagem de um ponto de distância em relação a si mesma, ao mundo, ao outro e a Deus, a um ponto de comunhão. Podemos compreender essa travessia como reconciliação. Em um dos vários momentos em que Lóri se percebe fluindo nesse movimento, lemos:

Estava à porta do terraço e só acontecia isto: ela via a chuva e a chuva caía de acordo com ela. Ela e a chuva estavam ocupadas em fluir com violência.

Quanto duraria esse seu estado? Percebeu que com essa pergunta estava apalpando seu pulso para sentir onde estaria o latejar dolorido de antes.

E viu que não havia o latejar da dor como antigamente. Apenas isso: chovia fortemente e ela estava vendo a chuva e molhando-se toda.

Que simplicidade.

Nunca imaginara que uma vez o mundo e ela chegassem a esse ponto de trigo maduro. A chuva e Lóri estavam tão juntas como a água da chuva estava ligada à chuva.

 

O ponto em que nunca imaginara chegar tinha sido atingido porque se colocara no movimento da aprendizagem, mas não foi planejado e nem atingido por seu próprio mérito. O ponto de trigo maduro é a imagem perfeita para que percebamos a maturação da comunhão. Unida ao mundo como a chuva está unida à água da chuva, ou seja, de modo irrenunciável, Lóri está, junto ao mundo, pronta para a colheita. Madura junto ao mundo. Reconciliada depois de ter vivido o abismo da distância em que sentia o pulso latejar de dor.

Em outra obra, Clarice mostra a reconciliação entre duas personagens que não sabem ao certo o que estão fazendo. Na cena final de A maçã no escuro, longo romance em que o personagem Martim se reconstrói e se entrega após ter cometido um crime, o vemos pedir perdão a Vitória, dona do sítio em que trabalhara por alguns meses. Ele pede perdão, mas não sabe bem por quê. Não chega a pronunciar a motivo do pedido, mas ela parece entender ao se constranger vendo-o ajoelhado à sua frente. Entretanto, mesmo sem palavras claras, algo se passa entre eles:

Mas então já era felizmente tarde demais: alguma coisa essencial se tinha feito. O que realmente acontecera ‒ não se sabe, sobretudo nenhum dos dois sabia, a gente substitui muito. (…) Os dois evitaram se olhar, emocionados com eles próprios, como se enfim fizessem parte daquela coisa maior que às vezes chega a conseguir se exprimir na tragédia. Como se houvesse atos que realizam tudo o que não se pode, e o ato transpõe o poder; e quando este se cumpre, realiza-se alguma coisa que o pensamento não fazia, nós que somos de uma perfeição atroz ‒ e a dor é que não estamos à altura de nossa perfeição; e quanto à nossa beleza, nós mal a suportamos ‒ Martim, por exemplo, olhou neste momento para os sapatos, oh por que disfarçamos tanto? encabulado na hora de sua morte, ele seria capaz de disfarçar assobiando. Como se tivessem acabado de realizar de novo o milagre do perdão, constrangidos com aquela cena miserável, evitaram se olhar, aborrecidos, há muita coisa inestética a perdoar. Mas, mesmo coberta de ridículo e de trapos, a mímica da ressurreição se tinha feito. Essas coisas que parecem não acontecer, mas acontecem.

 

Entre Martim e Vitória algo se passou que eles não alcançam compreender e nem muito menos expressar. Mas a narradora não deixa dúvidas de que, após o incompleto pedido de perdão de Martim, algo maior do que eles se passa entre os dois. Algo que diz respeito a perdão, reconciliação e ressurreição. Algo que é ali encenado como uma mímica, ou seja, que se comunica sem palavras. A ação da ressurreição tem lugar onde falta o discurso que a esclareça. Sem discurso, Martim e Vitória não se percebem como agentes do que encenam. O que se passa entre eles comunica o que não sabem. No momento em que Martim está prestes a ser levado pelos policiais pelo crime que cometera, se entregando às mãos humanas da justiça, ele se entrega à encenação em que não é mais o condutor do que faz.

Com essas duas belas imagens da obra de Clarice Lispector, podemos voltar ao chamado quaresmal. O chamado à reconciliação ecoa outras faces do chamamento bíblico que parece ter sempre essa ambiguidade: nos convoca a uma ação, mas, afinal, é Deus que age em nós ao nos colocarmos no caminho.

Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE

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