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Sessenta anos depois da Sacrosanctum Concilium: ousadia e paciência na redescoberta da centralidade litúrgica

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Washington Paranhos, SJ

Cremos ter chegado a hora em que a verdade acerca da Igreja de Cristo há-de ser – aprofundada, ordenada e expressa, não talvez com aqueles enunciados solenes que se chamam definições dogmáticas, mas por meio de declarações do magistério ordinário, mais explícito e autorizado, que digam à Igreja o que ela própria pensa de si mesma[1].

Sessenta anos depois da aprovação do primeiro dos grandes documentos conciliares – a Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium (SC) – não podemos dizer que compreendemos plenamente as suas intenções e horizontes. Certamente, como nenhuma outra das grandes expressões do Concílio, a SC teve, no espaço de poucos anos, os seus primeiros efeitos diretos no corpo eclesial, na experiência das pessoas, na vida das comunidades, na imaginação e na linguagem de milhões de cristãos.

Mas esta imediata tradução “prática” do Concílio não beneficiou apenas as “razões” da liturgia. Talvez, precisamente por causa dessa transformação imediata em “reforma”, a lógica de si e suas aspirações mais profundas ainda não tenham emergido claramente aos olhos dos cristãos de hoje. Inclusive o Papa Francisco escreveu: “Não vejo como é possível dizer que se reconhece a validade do Concílio, embora me surpreenda que um católico possa presumir não fazê-lo, e ao mesmo tempo não aceitar a reforma litúrgica nascida da Sacrosanctum concilium” (DD 31). Gostaria de tentar recordar a SC primeiro colocando o seu ditame no clima do Movimento Litúrgico, que preparou a cultura litúrgica do século XX, e depois indicando quais os pontos-chave de SC que conheceram uma difícil recepção e muitas vezes permaneceram quase ignorados nestes sessenta anos que nos separam e unem a SC.

 

  1. O Movimento Litúrgico, a Mediador Dei e a Sacrosanctum Concilium: ideias básicas e grandes insights Proféticos

Inicialmente, é preciso deixar claro que a SC não foi por acaso o primeiro fruto maduro do Concílio, pois tinha atrás de si uma preparação próxima e remota que não poderia ser comparada com nenhuma outra área da vida e do pensamento da Igreja. O Movimento Litúrgico, que marcou quase todo o século XX, a partir de 1909, produziu tal massa de “cultura litúrgica” que levou, já 16 anos antes de SC, em 1947, o magistério de Pio XII a abordar a questão litúrgica na íntegra na Encíclica Mediator Dei (MD).

Assim, não podemos deixar de nos surpreender com o fato de que, em apenas 16 anos, a necessidade de uma grande síntese global em matéria de liturgia foi sentida duas vezes. É legítimo perguntar: o que aconteceu na vida da Igreja para justificar um interesse tão premente?

A resposta que devemos dar é que não é possível entender nem o Movimento Litúrgico, nem a Encíclica Mediator Dei ou a Sacrosanctum concilium, sem levar em conta que desde 1800 se abriu no corpo eclesial o que se chamou de “questão litúrgica”, ou seja, uma questão radical sobre o significado e o alcance dos ritos sacramentais na vida da Igreja. Hoje lutamos para compreender o constrangimento daquelas gerações que, tendo sido educadas para marginalizar a liturgia num espaço cerimonial distante da fé e da espiritualidade, começaram lentamente a redescobrir os textos antigos, não só a Escritura, mas também os Padres da Igreja, e depois também os rituais do primeiro e segundo milênios, colocando a necessidade de uma reabilitação da liturgia no seu papel central e fundamental para a vida da Igreja.

No início, isso não foi nada fácil. Pelo contrário, durante uma série de décadas, pelo menos até à década de 1940, esta nova visão favorável da liturgia foi mal compreendida, suspeitada, e quase se considerou necessário defender-se dela: a própria Encíclica Mediator Dei testemunha bem essa atitude ambivalente, preocupada em acolher as novidades positivas do ML, mas não disposta a admitir qualquer mudança no plano teológico e espiritual.

De certa forma, até a publicação da Mediator Dei, a redescoberta da liturgia parece permanecer (pelo menos oficialmente) longe de qualquer impacto na vida espiritual e na reflexão teológica da Igreja. A própria linguagem do MD ainda é afetada por estilos expressivos e experienciais em que a linguagem da contemplação sempre e sistematicamente prevalece sobre a linguagem da ação.

Desse ponto de vista, a SC constitui um salto qualitativo e difícil de avaliar, justamente por não termos quase que completamente o registro expressivo e vivencial anterior. Bastaria considerar três aspectos fundamentais dessa mudança de estilo e registro:

  1. da definição de culto por meio de categorias gerais e abstratas, de caráter estritamente neoescolástico (ainda dominante na MD), passamos a uma exposição do sentido da liturgia narrada como continuação da história da salvação no tempo;
  2. tal apresentação da liturgia abre caminho para uma eclesiologia do mistério e da comunhão, na qual a Igreja se “compreende” na liturgia: de certo modo, é claro que a liturgia não é antes de tudo aquilo que a Igreja administra, mas antes a Igreja é fruto da liturgia, que assim aparece como o culmen et fons (SC 10) de toda a ação eclesial;
  3. Isso significa, enfim, uma serena abertura ao novo, na reconsideração do essencial da Ecclesia, que não é simplesmente o que foi recebido da Tradição mais recente, mas o que atravessa os séculos e que às vezes aparece obscurecido por interferências ligadas a contingências de menor importância. Isso implica a necessidade de “reformar” textos e gestos para trazê-los de volta à antiga e sempre nova verdade essencial;

Mas isso significa, no entanto, que este longo e cuidadoso trabalho de “reforma dos textos e dos gestos” tem a função de permitir que a liturgia volte a ser a fonte e o ápice de tudo o que a Igreja faz. A Reforma serve à Iniciação, isto é, para renovar a capacidade do culto litúrgico de ser a base das ações e pensamentos, palavras e imagens com que a Igreja, deixando-se guiar pelo seu Senhor, interpreta a si mesma e o mundo.

A vida é chamada a tornar-se culto a Deus, mas isto não pode acontecer sem a oração, especialmente a oração litúrgica. A descrição que atualmente o Papa Francisco faz da prática litúrgica recupera o valor do rito como dimensão significativa tanto na antropologia quanto na teologia, com implicações para a Igreja também no espaço público.

 

[1] Paulo VI, Papa. Discurso na Solene inauguração da 2ª Sessão do Concílio Vaticano II, 29 set. 1963. In: https://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/speeches/1963/documents/hf_p-vi_spe_19630929_concilio-vaticano-ii.html. Acesso em: 16 nov. 2023.

 

Washington Paranhos SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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