Marília Murta de Almeida
Sempre me intrigou o valor intenso dado à beleza, especialmente à beleza esperada nas mulheres. A despeito dessa intriga, que muitas vezes alcançou em mim a rebeldia contra a expectativa que adoece e entristece, porque nunca plenamente atingida, a beleza do mundo toca minhas cordas mais íntimas. Poderia dizer, como Carlos Drummond de Andrade em seu O avesso das coisas: “A beleza é a mais deslumbrante contestação da vida real”.
Poderíamos entender essa frase como um elogio da arte humana que, ao criar outro mundo, desdobramento do real em que temos que viver, contesta a realidade desprovida de beleza. A arte seria o reduto da beleza do mundo, criada pelo engenho humano capaz de desdobrar a realidade em dimensões não previstas. Entretanto, ainda que não negue e nem rejeite a beleza das criações humanas, proponho pensarmos que a beleza da natureza pode realizar, paradoxalmente, esse movimento contestatório de si mesma. Para isso, apoio-me nesta declaração do próprio Drummond em sua última entrevista, concedida ao jornalista Geneton Moares Neto, poucos dias antes de sua morte:
A beleza ainda me emociona muito. Não só a beleza física, mas a beleza natural. Hoje, com quase oitenta e cinco anos, tenho uma visão da natureza muito mais rica do que eu tinha quando era jovem. Eu reparava mais em certas formas de beleza. Mas, hoje, a natureza, para mim, é um repertório surpreendente de coisas magníficas e coisas belas. Contemplar o voo do pássaro, contemplar uma pomba ou uma rolinha que pousa na minha janela… Fico estático vendo a maravilha que é aquele bichinho que voou para cima de mim, à procura de comida ou de nem sei o quê. A inter-relação dos seres vivos e a integração dos seres vivos no meio natural, para mim, é uma coisa que considero sublime.
A beleza da natureza, assim, seria o desdobramento surpreendente da realidade a partir de si mesma, sua auto contestação. Há aí o tradicional pessimismo usualmente atribuído a Drummond, pois subentende-se que, se a beleza contesta a vida real, é porque traz consigo algo novo e diverso em relação à realidade. A vida real não teria o poder de nos surpreender, alegrar ou mesmo enlevar, tal como faz a beleza sublime. Entretanto, o pessimismo, assim como a realidade, se desdobra e gera seu oposto, pois na percepção da beleza do mundo natural está implicado um insistente otimismo em relação à vida.
É o mundo mesmo, em cores, formas, sons, perfumes, superfícies, que tem o poder de nos assaltar com maravilhas sempre renovadas. O exemplo de Drummond reflete seu amor pelos pássaros. Mas mostra também a sensibilidade entranhada nos movimentos entre os seres. Ao evocar a interrelação e integração entre os seres vivos e o mundo natural, o poeta nos envolve com a sugestão de que a beleza seja muito mais do que a visão estática de algo considerado belo. O voo do pássaro, ainda que belo pela forma que esboça, é mais belo ainda pelo que revela. Ao voar, pretende algo, intenciona – o poeta não sabe se é fome ou outra coisa, mas pressupõe que haja ali algo que entrelaça, une.
Os seres todos em relação esboçariam uma dança contínua, tal como a dança cosmoteândrica imaginada pelo teólogo Panikkar. A beleza percebida na interação faz com que tenhamos que saltar de uma noção estática de beleza para uma noção dinâmica em que a forma é apenas imaginada. A dança é bela pelo conjunto que percebemos no movimento e que não se deixa captar em uma imagem estanque.
Assim como quando andamos em uma paisagem tão bela que não conseguimos retratar na fotografia. Somente o fotógrafo artista o conseguiria, porque persegue a realização artística daquilo que vê na realidade. Mas a percepção da beleza não é exclusividade do artista, é possibilidade dada a nós todos, que somos também seres da natureza e participamos da dança teândrica com o acréscimo da sensibilidade capaz de se dar conta da beleza vivida.
O paradoxo da vida real se duplica também em nós. A racionalidade crítica nos faz capazes de perceber a feiura e indignidade que fazem parte da realidade e que muitas vezes parecem ser sua única face. De outra parte, a sensibilidade nos permite aceder ao movimento da beleza que surpreende e destrava, tal como uma inspiração profunda capaz de fazer o oxigênio penetrar todas as células carentes de vida em nosso corpo.
Por isso a beleza exigida causa estranhamento. Se é cuidadosamente buscada e preparada, não é a beleza contestatória que surpreende e oxigena. A beleza capaz de gerar a vida nova, tal como o ar profundamente inspirado, é ela própria nova, porque contém em si algo não controlado que evoca a novidade da dança insistentemente recriada.
A mim, mais do que o voo dos passarinhos que assombra o poeta, causa maravilhamento o olhar macio das vacas no pasto, sob a luz dos primeiros raios de sol de cada manhã na redondeza em que agora vivo.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE
26/06/2025
Foto: Shutterstock