Geraldo Luiz De Mori, SJ
“Ora a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).
No dia 9/05/2024 o Papa Francisco assinou a Bula de Proclamação do Jubileu Ordinário do ano de 2025, que traz como título um trecho de Rm 5,5: “Spes non confundit”, ou seja, “a esperança não confunde”. A Bula estabelece como lema para esse ano jubilar “Peregrinos da Esperança”, e oferece uma reflexão teológica e espiritual sobre o significado do jubileu na tradição bíblica e eclesial. Apresenta ainda uma série de orientações para sua celebração. No dia 24/12/2024, na Basílica de São Pedro, o Pontífice fez a solene abertuda da porta santa, ritual com o qual se inicia o ano jubilar. Esta cerimônia se repetiu nos dias seguintes na prisão Rebbibia, em Roma, nas basílicas de São João do Latrão, Santa Maria Maior e São Paulo Fora dos Muros, e nas dioceses de todo o mundo, que também realizaram atos litúrgicos que deram início ao ano jubilar.
A instituição dos anos jubilares ordinários começou na Igreja católica em 1300, embora vários santuários importantes já tivessem estabelecido algumas práticas típicas do que é previsto num ano jubilar, como as da peregrinação, confissão e indulgências. Os jubileus ordinários ocorrem a cada 25 anos e o último foi em 2000. Eles podem ser entremeados com jubileus extraordinários, como o de 2015, dedicado à misericórdia, e o de 2033, que celebrará os 2000 anos da redenção. A Bula que proclama o atual jubileu, está organizada em cinco partes: fundamentos bíblicos, a peregrinação como ideia motivadora, os “sinais da esperança”, os “apelos em favor da esperança, a razão última da esperança: a fé na “vida eterna”, presente no último artigo do Símbolo dos Apóstolos.
Para quem pensa a pastoral no mundo católico como “evento”, o Jubileu de 2025 é como um “virar a página” sobre os processos vividos pela Igreja nos anos anteriores, sobretudo os que culminaram na 2ª Sessão da XVI Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, encerrada no final de outubro de 2024, com o Documento Final e as orientações que demandam o laborioso processo de conversão em várias dimensões da instituição eclesial. Ao ler, porém, a Bula que convoca o Ano Jubilar, percebe-se que, mais do que “virar a página”, o Papa convida a Igreja a entrar numa peregrinação difícil, na qual mais do que nunca, como muitos no Brasil gostam de dizer, não se pode deixar de esperançar.
Com efeito, a entrada da humanidade em 2025, embora feita das costumeiras festas do natal e do ano novo, fortemente “colonizadas” pela lógica consumista do mercado, tem sido marcada pelas notícias que não param de chegar sobre as novas orientações do novo mandatário dos Estados Unidos da América em seu afã de assegurar a supremacia de seu país sobre o conjunto das demais nações do planeta. A essa “grande narrativa”, que vai se desdobrando em uma série de decisões sobre territórios pretensamente pertencetes a seu país (Canadá, Groenlância, Canal do Panamá e, mais recentemente, a Faixa de Gaza a ser administrada pelos USA), seguem-se os demais sinais e definições de seu governo e aliados: a adesão dos “senhores” das “big techs” às orientações do novo Presidente, como a de não mais checar informações na Plataforma da Meta; o gesto de Elon Musk, que evoca o dos adeptos da Alemanha nazista; a taxação dos produtos de nações tradicionalmente parceiras, como Canadá, México e China; a interrupção das ajudas dadas a organizações de ajuda humanitária; a saída dos USA da Organização Mundial da Saúde; o negacionismo climático, com o não cumprimento dos acordos de Paris, da COP 21, e o apoio ao retorno da exploração dos combustíveis fósseis; o perdão dos que atentaram contra o Capitólio no dia 06/01/2021.
Essa “grande narrativa” internacional também tem desdobramentos no Brasil, como os das “brigas dos bonés”, que opõem os apoiadores do ex-presidente aos do atual presidente; as eleições na Câmara dos Deputados e do Senado; o jogo de interesses presente nessas expressões da política que, mais que pensar em um projeto de nação, busca assegurar privilégios de grupos de interesses, em geral, os dos “donos do poder” no país, mascarados de “salvadores da pátria” e defensores dos “interesses populares”.
Como os antigos hebreus no exílio, que se perguntavam, “mas como podemos cantar ao Senhor em terra estrangeira?” (Sl 137,4), quem entra no ano jubilar poderia se perguntar, como “esperançar em terras onde parece não haver nada que esperar?” E esta sensação se reduplica quando se olha para a situação eclesial que, mesmo depois de todos os apelos e provocações do processo sinodal, parece não avançar, já que o “sempre foi assim” da pastoral da manutenção, que assegura privilégios, sobretudo dos clérigos, é mais forte do que o apelo a sair da “zona de conforto” e ser “Igreja em saída”.
A Bula que proclama o Jubileu de 2025 lembra que “é o Espírito Santo, com a sua presença perene no caminho da Igreja, que irradia nos crentes a luz da esperança: mantém-na acesa como uma tocha que nunca se apaga”. De fato, diz o Pontífice, “a esperança cristã não engana nem desilude, porque está fundada na certeza de que nada e ninguém poderá jamais separar” quem crê em Cristo do amor divino. Ela funda-se na fé e é alimentada pela caridade (SNC, 3). Em Paulo, continua o Papa, a esperança é realista, sendo vivenciada em meio à tribulação e ao sofrimento. Ela dá origem a uma virtude que é sua parente próxima: a paciência, que, na sociedade atual, “deixou de ser de casa” (SNC, 4). Como redescobrir e experimentar essas duas virtudes? Francisco evoca o lugar dos “momentos fortes” nos quais, a partir do encontro com o Senhor, se robustece a esperança: a peregrinação. Ela leva as pessoas a se colocarem a caminho, redescobrindo o valor do silêncio, do esforço, do essencial, que pode culminar a de novo acolher a misericórdia infinita de Deus, única que pode efetivamente levar à conversão.
Essa ideia de pausa, a ser experimentada a partir da experiência da peregrinação, embora possa não trazer nenhuma solução aos grandes problemas do mundo e da Igreja, traça um caminho, o caminho da esperança, que necessita sempre de novo ser alimentado, para não cair no desespero, na apatia ou no cinismo. De fato, se a fé está na origem do caminho inaugurado por Abraão e levado à plenitude por Jesus de Nazaré (Hb 12,2), ela só subsiste porque é mantida pela esperança (Hb 11,1). Também o amor, outra virtude teologal, só é amor porque espera amar mesmo o que parece não amável.
Em tempos de tantos retrocessos na compreesão do que é a dignidade humana, o bem comum, a contribuição do “nós” na formação das identidades, em que há tanta violência e desrespeito pelos direitos dos mais vulneráveis, tantos ameaças à casa comum, a pausa da peregrinação jubilar pode reacender de novo a chama que fumega e que deve insistir em animar a fé e motivar a doação gratuita no amor. Como a fé e o amor, a esperança não é algo que se alcança pelo próprio esforço. Ela é dom, talvez um dos dons mais preciosos dados por Deus, pela ação do Espírito Santo. Por isso, necessita ser pedida, buscada, acolhida, alimentada. E os atos do ano jubilar podem favorecer isso. Não para fechar os olhos diante de tantos desrespeitos à vida humana e do planeta, mas para deixar espaço para que o Espírito venha em auxílio à pobreza de quem crê e ama, para que acolha como convém o dom de sempre “esperar contra toda esperança”.
Geraldo Luiz De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE