Marília Murta de Almeida
Nos anos 50 do século passado, Carlos Drummond de Andrade participou de uma série de programas de rádio em que falava sobre a sua vida. Logo ao início, levado a contar sobre suas primeiras leituras, o poeta fala não propriamente sobre uma leitura, já que, segundo ele, se tratava de uma versão infantil com mais imagens do que texto, mas da lembrança de um personagem, Robinson Crusoé, e localiza nesta lembrança sua “primeira emoção literária” – menino, sentiu o nó na garganta ao sofrer pelo personagem, pois, ao final da história, gostaria que Robinson tivesse continuado na ilha.
Essa imagem da “primeira emoção literária” me colocou em busca de qual teria sido para mim a primeira experiência de me emocionar com o mundo da literatura. Encontrei no mar de reminiscências e invenções da minha memória antiga o livro A chave do tamanho, de Monteiro Lobato. Fui uma leitora voraz de toda a coleção do Sítio do Picapau Amarelo e o livro sobre a peripécia da Emília de desligar a chave do tamanho marcou minha sensibilidade e aguçou meu interesse pela leitura.
A boneca que falava e se metia em tudo, quis resolver o problema da guerra ao ouvir as preocupações de Dona Benta sobre a situação do mundo. Encontrou o local em que estavam as chaves todas do mundo e, ao pretender desligar a chave da guerra, desligou a chave do tamanho. O resultado foi a redução drástica do tamanho das pessoas todas que passaram a ser alvo fácil para os insetos. O mundo se tornou absurdamente perigoso para o ser humano e atravessar uma varanda custava tanto quanto atravessar o mar.
A emoção que me tomava era o medo, mas também certa fascinação pela ideia de sermos todos tão pequenos quanto uma joaninha. Mais tarde conheci também os habitantes de Lilliput, ilha das pequenas criaturas encontrada por Gulliver em suas viagens. E também Alice que, em seu País das Maravilhas, mudou de tamanho diversas vezes.
Agora, tomada por essas lembranças e buscando o fio da emoção vivida, passo também a pensar sobre o tamanho que temos. A mudança real do tamanho do corpo parece apontar para o tamanho simbólico que temos, seja coletiva, individual ou socialmente e para a possível distância entre o tamanho que julgamos ter e o que nos conferem.
Se, como coletivo humano colocado frente à vastidão do universo, atingimos o tamanho do infinitamente pequeno, daquilo que nem a lente de aumento do Visconde de Sabugosa consegue tornar visível, como indivíduo somos levados ao maior tamanho possível para as pessoas que nos veem bem de perto, especialmente para aquelas que precisam de nós, como uma criança pequena.
Entre o infinitamente pequeno e o engrandecido pelo amor ou pela dependência de alguém, passamos, como Alice, por constantes mudanças de tamanho ao longo da vida. Psiquicamente, as mudanças levam às experiências mais diversas, da humilhação à vaidade. O descompasso entre o tamanho em que nos vemos e o que nos dizem os outros levam a vivências que podem ser muito dolorosas e às vezes danosas. Mas também o alinhamento entre essas percepções internas e externas não significa necessariamente que elas sejam verdadeiras.
Entretanto, parece não haver o tamanho verdadeiro, ou real, para o humano. Como Alice, temos às vezes que nos encolher para passar por uma porta pequena demais ou de repente nos engrandecemos ao tomar desavisados um líquido qualquer. Com maior ou menor controle, experimentamos as mudanças de tamanho de acordo com o que nos pede o mundo em torno. Além disso, lidamos com nossa emoção ao assumir este ou aquele tamanho, porque não somente temos tal tamanho, mas gostamos ou não gostamos do tamanho que temos. Sentimo-nos inadequados com bastante frequência.
A adequação parece então ser um movimento constante na existência humana. Crescendo e diminuindo de acordo com a própria percepção e a do mundo sobre nós, caminhamos ora a passos largos ora com passos liliputianos. Porque nossas pernas são às vezes grandes demais, outras vezes pequenas demais. Grandes demais, não passamos em qualquer lugar, mas dificilmente seremos presas de alguém; causamos medo, mas dificilmente somos amados. Pequenos demais, passamos em qualquer fresta, mas somos a todo momento possíveis vítimas; tememos, mas despertamos compaixão, como a que senti menina acompanhando os personagens minúsculos de Monteiro Lobato.
Seria talvez fácil dizer que não somos nem minúsculos nem gigantes, temos nosso tamanho humano e com ele seguimos. Mas a imaginação insiste em nos apontar a presença dos gigantes e dos minúsculos, provavelmente para que desenvolvamos nossa percepção para melhor agirmos em função de uma realidade mais justa. Exaltar o pequeno e diminuir o gigante, como já aponta o Evangelho de Mateus (Mt 23,12), para assim caminharmos na direção do tamanho humano da equidade.
Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE