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“Todos, Todos, Todos”

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Geraldo De Mori, SJ

Deus enviou seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por meio dele” (Jo 3,17).

 

No discurso de acolhida aos jovens que vieram para a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, no Parque Eduardo VII, no dia 3 de agosto de 2023, o Papa Francisco repetiu e fez a multidão que lá se encontrava repetir várias vezes “todos, todos, todos”, indicando com isso que na Igreja há lugar para todos, que ninguém pode ser excluído e nem deve se sentir excluído. No início de seu discurso ele recorda que cada pessoa é amada por Deus, por ser única e, por isso, chamada pelo nome. Nesse sentido, antes de qualquer qualidade ou dom que tenhamos, mas também antes de qualquer sombra ou ferida que trazemos, somos chamados, pois cada pessoa é única e tem valor.

O que Francisco disse para os jovens não é privilégio deles, pois cada ser humano é portador de uma dignidade única, valendo não só porque goza dessa dignidade, mas porque é amado por Deus. Na verdade, antes mesmo do valor ético, existe em Deus uma “paixão” por sua criação, que Paulo, na carta aos Coríntios chama de “ágape” (1Cor 13,1-13), termo grego distinto de “eros” (= amor dos amantes) e de “filia” (= amor dos amigos), que também expressam um tipo de amor, mas, que, em geral, é feito de reciprocidade, enquanto “ágape” é o amor completamente gratuito e sem por quê. A língua latina traduziu esse termo por “charitas”, que em português deu origem ao termo “caridade”, mas que muitas vezes se tornou um termo abstrato, usado para expressar obras de caridade, pessoas caridosas ou ainda, a virtude da caridade. Em seu significado teológico, o termo ainda guarda um sentido forte, pois remete ao próprio Deus, identificado como “amor” (= caridade) pelo evangelista João (1Jo 4,8), ou com o Espírito Santo, que é a fonte mesma do amor em Deus e da capacidade humana de poder amar.

Ao insistir no “todos”, independente de quem seja ou do que tenha feito, o Papa não está fazendo retórica, utilizando-se de um discurso atrativo para seduzir os jovens, uma vez que, em grande parte do mundo, é o grupo no qual mais se percebe o que muitos sociólogos estão chamando de “desafiliação” religiosa, que dá origem ao fenômeno do “crer sem pertencer”. No Brasil, uma pesquisa do Datafolha, publicada no dia 09/05/2022, mostrava que “jovens sem religião superam católicos e evangélicos em São Paulo e no Rio de Janeiro”, constituindo mais de 30% nas duas maiores cidades do país. O que Francisco pretende, ao insistir no “todos”, tem a ver com o enrijecimento de muitos grupos religiosos, sobretudo no mundo católico, que insistem tanto na busca de uma santidade sem relação nenhuma com o mundo, que os leva a excluir grupos inteiros da salvação ou a anatematizar quem não pensa, não reza e não se comporta como eles.

A jornada enquanto tal, para quem pôde participar ou a acompanhou pelas redes sociais e pelos canais de inspiração católica, foi uma festa de alegria, encontro, confraternização. Também foi marcada por momentos bonitos de oração e celebração. Quem nela se envolveu ou faz parte de grupos engajados na pastoral, certamente se sentiu consolado e motivado a retomar o caminho da evangelização das juventudes. No caso específico do Brasil, os dados revelados em 2022 pelo Datafolha fazem pensar. Muitas comunidades pelo país afora sentem ainda a ausência das novas gerações em sua vida cotidiana, uma vez que depois da pandemia é o grupo que tem mais resistido a voltar. Por outro lado, o crescimento dos “sem religião” é revelador de um movimento importante que deveria provocar reflexão e discernimento entre os que estão à frente do processo de evangelização de crianças, adolescentes e jovens. No fundo, a grande questão que se põe hoje é: como transmitir a fé para as pessoas gestadas na cultura do consumo, da fragmentação e das formas de relacionalidade oriundas do “continente digital”, ou pela exclusão a que tais grupos são relegados nas periferias produzidas pelo atual sistema, que não só os exclui, mas também tende a transformá-los em “descarte”?

Na Exortação pós-sinodal Christus vivit, o Papa Francisco recorre à imagem de um Jesus Cristo “sempre jovem” para mostrar o poder de sentido e de salvação que brota da vida de Jesus de Nazaré, insistindo também na afirmação de que, por seu Espírito, a Igreja também é continuamente renovada e rejuvenescida. Não só porque ela recebe a cada dia novos fiéis, muitos deles crianças, adolescentes e jovens, mas porque em sua identidade, como na de seu Senhor, ela é sempre de novo “renovada”, como diz a oração ao Espírito Santo, feita em tantos grupos eclesiais católicos, que expressa a convicção de que é o Espírito que torna jovem constantemente a Igreja. Após oferecer a luz da juventude permanente do Cristo e do rejuvenescimento contínuo da Igreja, o Pontífice apresenta ainda as características do mundo juvenil contemporâneo, sua diversidade, as tendências culturais que mais o impacta, como a da tecnologia digital, a das inúmeras feridas a que está sujeito, mas igualmente de sua contínua busca, em geral, da felicidade.

Para além do avivamento despertado pela Jornada Mundial da Juventude e para além dos muitos documentos da Igreja sobre as juventudes e os desafios que levantam para a evangelização, talvez o que mais seja necessário hoje é sair de certa paralisia, que faz com que todos reclamem da ausência dos jovens, mas não dão nenhum passo para ir ao seu encontro. Mais ainda urgente, certamente, é deixar a “pastoral da manutenção”, seja a dos grupos que nasceram dos “anos dourados” das muitas iniciativas da pastorais de juventude que emergiram da renovação conciliar, seja a dos movimentos que incessantemente repetem a “receita” de trabalhar o afetivo ou o doutrinal, esquecendo que as novas juventudes buscam mais, que elas não querem ser permanentemente ser reduzidas ao estado de “minoridade” social e eclesial, mas querem participar ativamente da construção de um outro mundo e uma outra Igreja, nos quais se sintam “em casa”, pois esse mundo e essa Igreja têm o que elas ofereceram.

Sem a “saída” ou a “conversão” missionária, sobre as quais tanto insiste o Papa Francisco, nada mudará, ou se mudar, será apenas um “verniz”, facilmente rasurável, que logo perderá o brilho, ampliando a crise do anúncio e da transmissão do grande “tesouro” que a Igreja recebeu e que carrega em “vasos de argila” (2Cor 4,7). A “saída” em questão supõe, junto ao mundo juvenil, uma enorme capacidade de deixar-se interpelar por suas questões, não temer ir ao seu encontro, colocar-se à sua escuta. As juventudes, no plural, que habitam o mundo presente, são muito mais complexas, plurais, contraditórias do que as juventudes que saíam do mundo rural, como no período de recepção do Vaticano II no Brasil, ou que eram marcadas pelas grandes questões da ciência moderna, que marcavam igualmente certos grupos juvenis mais elitizados. Ter a ousadia de colocar-se à sua escuta, de ir ao seu encontro, não esperar que venham às igrejas, mas ousar ir aonde vivem e dão sentido à sua existência. Descobrir o que os faz sonhar e em que estão dispostos a apostar suas vidas, mesmo de modo fragmentário e nem sempre coerente. Isso é ser “Igreja em saída”, aberta às surpresas que o próprio Senhor poderá lhe abrir disso que poderá aparentemente “enlameá-la”, mas que, como diz Francisco, é mais coerente com sua identidade missionária do que a autopreservação.

Geraldo Luiz de Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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