Bruno Pettersen
Comecemos com uma recapitulação: a dopamina é um neurotransmissor descoberto em 1957 pelo sueco Arvid Carlsson que é essencial para o funcionamento do cérebro e da cognição humana. Algumas vezes ele é chamado é de “neurotransmissor do prazer” pelo papel dele na regulação de atividades de prazer e estímulo, no entanto, chamá-lo dessa forma é uma percepção limitada, uma vez que ele tem um papel muito relevante em vários aspectos do corpo humano, tal como o controle motor e o sistema de cognição humana. Por exemplo, do ponto de vista motor, a dopamina exerce função no controle de movimentos corporais, sendo que a sua má regulação está associada ao Parkinson; e na cognição, a deficiência da dopamina pode ajudar a explicar casos como o TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade).
No entanto, a dopamina tem estado presente de forma quase que ubíqua nas explicações do comportamento humano, em especial nas relações que envolvem prazer, compulsão e vício. Esse neurotransmissor está na base de inúmeras explicações de comportamentos suspostamente simples como o desejo por comer mais um pedaço daquele bolo de cenoura com cobertura de chocolate, até comportamentos perigosos como o vício em telas ou até mesmo vício em drogas ilícitas. No entanto, para compreendê-la precisamos voltar a própria história do estudo desse neurotransmissor, e, para tal, voltemos ao experimento de Wolfram Schultz, realizado com primatas em 1980-90.
Schultz ajudou a transformar a compreensão dos efeitos da dopamina no cérebro ao realizar uma série de experimentos com ações de recompensa a partir de ações realizadas com macacos. Inicialmente, acreditava-se que a dopamina era liberada ao se ter a recompensa a partir de uma ação específica, no entanto, Schultz observou que esses neurônios aumentavam sua atividade quando os animais recebiam uma recompensa inesperada. Até então, pensava-se que esse neurotransmissor estivesse apenas ligado ao prazer ou ao ato de receber uma recompensa. Schultz e sua equipe demonstraram que a dopamina tem um papel muito mais sofisticado: ela está ligada à antecipação da recompensa e ao aprendizado de padrões previsíveis de estímulo e resposta. Esse experimento permitiu compreender a dopamina a partir de uma perspectiva muito mais sofisticada do que apenas a liberação após a ingestão de uma substância ou a presença de um estímulo. De modo direto: a dopamina não está ligada apenas ao prazer, mas à sua antecipação, a contextos que o indivíduo pode ou não receber uma recompensa.
Esse tipo de experiência nos mostra que o neurotransmissor tem um papel essencial na ação do indivíduo. Mas será que ela realmente consegue explicar o comportamento? De um ponto de vista filosófico, é importante colocar uma questão: será que todo comportamento que envolve o prazer ou a busca dele pode ser explicado pela dopamina? Será que existem fatores que estão para além da questão físico-química?
Antes de começar meu argumento sobre isso, permita-me deixar um ponto claro: acredito, com base nas evidências disponíveis, na importância fundamental da dopamina em processos de prazer e na própria antecipação de comportamentos. Não há qualquer sombra de dúvida da importância desse neurotransmissor. No entanto, minha tese é que, explicar toda a ação humana por meio de um processo químico-físico é, no mínimo, simplificar e, no máximo, nos enganar sobre em que consiste a natureza das ações humanas.
Começando com um erro simples: falas como “a dopamina quer” ou “o seu cérebro precisa ser controlado por você” e análogos são erros graves de atribuir intencionalidade a processos físicos. A dopamina não “quer” algo, ela é um neurotransmissor; neurotransmissores não “querem” nada. O seu cérebro não precisa ser controlado por você: ele é você.
Depois, um erro mais difícil de ser percebido: não é porque um neurotransmissor está presente em uma situação que toda a explicação se resumirá a isso. Comer um pedaço de bolo tem muito do mecanismo explicado por Schultz de antecipação de dopamina, não há dúvida, mas depende de tantos outros fatores: pode ser que eu esteja pensando em partilhar mais um momento com alguém, de me lembrar com carinho da memória de alguém que fazia aquele bolo, de ter um momento de puro deleite depois de um dia complicado. Comer um bolo não é apenas dopamina; na verdade, é um processo antropológico, ético, emotivo e até transcendente. Um vício em uma substância como a cocaína é, obviamente, baseado na liberação de neurotransmissores e na dor de ficar sem eles, mas é muito mais do que isso: são as condições sociais, econômicas, pessoais, sentimentos dolorosos e tantos outros.
Falhamos como sociedade ao supor que é possível “treinar o seu cérebro” para “ele” não “querer” mais dopamina. Somos seres muito complexos, que têm cérebros que reagem com substâncias físico-químicas, mas não temos que treinar cérebros, temos que educar o indivíduo de forma completa, lembrando que ele é corpo, mas que ele é uma multiplicidade de relações sociais e simbólicas que criam uma dimensão que, embora tenha um profundo aspecto químico, não se limita a ele. Lembro-me aqui do antropólogo Claude Lévi-Strauss, em seu célebre O Cru e o Cozido, articulando que a transformação dos alimentos crus em cozidos é uma mediação simbólica entre a natureza e a cultura, que ultrapassa as necessidades nutricionais da comida: comida nunca é apenas comida.
Por que essa ideia, então, é tão bem aceita? Por que estamos tão focados na dopamina como o próprio comportamento? Tenho aqui duas hipóteses: 1) a ideia de que o comportamento humano pode ser regulado apenas por medicamentos feitos para regular neurotransmissores, fortalecendo uma sociedade que acredita que pode curar doenças mentais apenas com remédios; 2) a ideia de que existem explicações simples para comportamentos complexos também é tentadora. Mas precisaria de mais algumas páginas para articular essas ideias; fica para uma próxima.
No fim, a condição humana é física. Não há dúvida. Mas somos seres múltiplos e não redutíveis. Precisamos nos lembrar que é preciso compreender não apenas “cérebros”, mas pessoas completas, imersas em tudo o que nos faz humanos.
Bruno Pettersen é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE
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