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Uma proposta para rezar a Quaresma de forma inaciana

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Alfredo Sampaio Costa SJ

Março chegou e de variante em variante, seguimos nossa luta contra uma pandemia que insiste em prosseguir. Os seus impactos continuam se fazendo sentir em todos os âmbitos da nossa vida. Temos vivido o drama de tantas mortes e destruição causadas pelas chuvas torrenciais que varrem nosso país. Como seguir adiante? É preciso lutar contra o desânimo, o cansaço, alimentar nossa esperança. É nesse contexto que nos aproximamos de mais um tempo forte na Igreja: a Quaresma. Como encontrar a presença de Deus em meio a essa situação que parece sempre fugir ao nosso controle?

Certamente não tem sido nada fácil viver nossa fé, mesmo com todos nossos esforços pessoais, comunitários, eclesiais para sobreviver às tempestades que se abatem uma após a outra sobre nós, sem dar tempo para encontrarmos as estratégias adequadas para combatê-las?

Gosto muito de ler o autor tcheco Tomás Halík. Suas reflexões me ajudam a manter acesa a luz da fé em tempos incertos. No seu livro “Quero que sejas. Podemos acreditar no Deus do amor?” (Vozes, Petrópolis 2018) ele escreve: “Em tempos em que a pergunta por Deus não só permanece sem resposta, mas muitas vezes nem é feita, Deus talvez se dirija a nós de modo semelhante a como se dirigiu a Jó: Eu te perguntarei, tu me responderás!”. Citando o filósofo Richard Kearney que, refletindo sobre Moisés diante da sarça, escreve que Deus se aproxima de nós não como fato, mas como possibilidade, desafio e incentivo, acrescenta: “refletir sobre Deus significa expor-se a si mesmo às perguntas: Quem é você? Onde está você? Mas também: Onde está seu irmão?” (p.21).

Nós, que insistimos teimosamente em querer encontrar respostas para todas as questões que nos incomodam, estamos aprendendo, do modo mais duro existencialmente, que nem sempre encontraremos respostas claras e inequívocas. E se pergunta Tomás Halík: “Quem de nós tem a coragem de se expor a um Deus que constantemente transcende as concepções que elaboramos a seu respeito e nos obriga a reavaliar sempre de novo os nossos modos de ver o mundo e a nós mesmos?” (p.23).

Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”.  Segundo o evangelho de São Marcos, Jesus se despede deste mundo com essas palavras nos lábios. Jesus citou aqui o Salmo 22, que começa com essas palavras desesperadoras, mas que termina numa entrega à fé – é o que lemos numa série de comentários tranquilizantes. Mas mesmo se assim fosse, isso minimizaria o terror deste primeiro versículo que Jesus gritou pendurado numa cruz?

Halik argumenta que nossos pensamentos seguem uma direção um pouco diferente quando levamos em conta a informação que a tradução literal daquelas palavras de Jesus é: Deus meu, Deus meu, para que me abandonaste? Se assim é, não se trataria de um grito resignado de um desesperado, que está voltado para o passado e desiste de fé e esperança, mas uma pergunta dirigida a Deus numa oração penetrante; uma pergunta voltada para o futuro, para o sentido que ainda precisa se revelar. Deus, para que tudo isso? Essa pergunta não se dirige a nós. Não temos a competência para respondê-la na forma de teorias especulativas sobre o sentido da cruz. Essa pergunta só pode ser dirigida a Deus – e apenas Ele pode respondê-la (p.29)

Esse grito está preso na garganta de milhares de pessoas hoje. Como fechar nossos ouvidos?

As mutações e o surgimento de novas variantes desse vírus, impedindo-nos de continuar fingindo que “já passou”, coincide com a chegada de mais um tempo quaresmal. Caminhamos- pasmem – mais um ano! – sem saber se teremos como celebrar a Semana Santa! Em meio a tantas incertezas, precisamos pedir ao Senhor a graça de não esmorecer na fé e na esperança e continuar a crer no Amor que vence tudo, até mesmo a morte. As reflexões deste tempo quaresmal pretendem ser um auxílio para vivenciarmos o tempo litúrgico de uma Quaresma como nunca tivemos antes, a partir da espiritualidade inaciana, profundamente ancorada no desejo de partilhar da Cruz do Senhor, do seu sofrimento e dor, para poder também participar da sua glória, como bem nos lembra Inácio na chamada Meditação do Reino do livro dos Exercícios Espirituais.

Inseguros, cansados, desesperançados, somos convidados a penetrar nos mistérios da paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor, acompanhando-o da Última Ceia ao sepulcro, pedindo a graça de não sermos tomados pelo sono como os discípulos no Horto nem abandonarmos o Senhor, como na cena da prisão.

Como rezar esses momentos duros e decisivos da vida de Nosso Senhor? Somos chamados a dirigir o nosso olhar para o sofrimento e sacrifício de Jesus, mas considerando igualmente sua entrega amorosa a todos nós e sua fidelidade ao Pai. Estamos habituados à grande afluência de gente às celebrações da Semana Santa em nossas Igrejas. A identificação com o sofrimento, a experiência amarga da dor e da morte, fazem-se companheiras habituais de nossa gente, misturando-se com sua fé sempre viva.

Santo Inácio, ao propor a contemplação desses mistérios dolorosos, tem uma nota curiosa que joga luz sobre a experiência que ele nos propõe rezar. De fato, ele vê os mistérios da Paixão como a consumação de uma vida toda ela entregue por amor. Por isso ele nos exorta a recordar tudo o que Ele sofreu “desde o momento em que nasceu até o mistério da Paixão no qual me encontro agora” (EE 206b).

Esse “agora” de Inácio quer atualizar e encarnar nossa contemplação, envolvendo nossa realidade, por mais dura e crua que se nos apresente, na nossa oração. Hoje, mais do que nunca, precisamos poder rezar o que está acontecendo. Tarefa exigente, que parece ir muito além de nossas forças. Por isso, é preciso pedir graça para poder realizá-la!

A oração certamente não será fácil. Em tons dramáticosMiguel Ángel Fiorito, especialista nos Exercícios, escreve no seu comentário aos EE que se trata aqui de animar a pessoa que contempla o Cristo que padece a resistir até o ponto de derramar o próprio sangue – como o fez o mesmo Cristo – às tentações que o assolarão após ter conhecido qual era a vontade de Deus[1].

Lembrando que se trata de uma oração de comunhão com o Cristo que padece ainda hoje de tantas formas, não deveríamos nos maravilhar da sua dificuldade. É preciso pedir forças para resistir. E graça para nos dispormos a sofrer com Ele na pessoa dos nossos irmãos e irmãs que padecem a Paixão hoje. Portanto, a oração no tempo quaresmal é, fundamentalmente, uma questão de  SEGUIMENTO, AMOR E CAPACIDADE DE SOFRER PELO OUTRO!

Enfrentar a vida como ela é, na sua indefinição e incertezas, exige uma fé forte e uma esperança que se renova sempre. Não é nada fácil sermos cristãos em meio a uma pandemia que tirou o chão de debaixo de nossos pés. O tempo litúrgico da Quaresma, colocando-nos sem rodeios diante do sofrimento de Cristo, ajuda-nos a viver com realismo a nossa vida espiritual.

O tempo da prova e da tentação é também a ocasião propícia para purificar nossos desejos mais íntimos de servir, para verificar até que ponto vai nosso amor por Cristo e nossa capacidade de nos doarmos.

É o tempo de verificarmos qual Cristo estamos seguindo na nossa vida. O Cristo da Quaresma é o Servo por Amor, o Servo Sofredor, ou, como aparece para Inácio, o Cristo pobre e humilhado com a Cruz às costas. Que se encarnou em pobreza total, que enfrentou toda sorte de humilhações e sofrimentos na sua paixão.  Ao contemplar a dor e os opróbrios de Cristo, o exercitante entende melhor quais são as consequências de aceitar o convite de um Rei cuja coroa foi tecida de espinhos[2].

Por mais dura e exigente que seja essa etapa, não podemos saltá-la. Assim como não podemos falar em viver uma vida cristã, tirando dela o Mistério da Cruz, em toda a sua dramaticidade. É importante lembrar que a Paixão é o momento auge de toda a trajetória de Jesus, onde se revela de modo eminente a sua pessoa e identidade. Ao rezar esse tempo, sairemos certamente transformados para melhor no nosso desejo de configuração com Cristo.

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

[1] Miguel Ángel FIORITO, Buscar y hallar la voluntad de Dios. Paulinas, Buenos Aires 2000, 756.

[2] Cf. Jacques LEWIS, Conocimiento de los Ejercicios Espirituales de San Ignacio, Sal Terrae, Santander 1987, 232.

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