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Vacinação, Judicialização e Biopolítica

Elton Vitoriano Ribeiro SJ

No início do mês de fevereiro, o Brasil começou, após vários percalços, a vacinação infantil contra a COVID-19. A vacinação infantil não é nenhuma novidade em nosso país. O Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), conjunto de normas que tem por objetivo a proteção integral das crianças e dos adolescentes no Brasil, determina em seu artigo 14 a obrigatoriedade da vacinação de crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias. A grande adesão da população brasileira às campanhas de vacinação infantil erradicou, ou pelo menos restringiu muito, algumas doenças perigosas como a varíola, a poliomielite, o sarampo, o tétano, a difteria, a caxumba e a rubéola, por exemplo. Se você que está lendo este texto não conhece essas doenças, muito provavelmente, é porque foi vacinado contra elas na infância.

Diante dessa prática vacinal consagrada na sociedade brasileira, causou-me certa estranheza as manchetes dos jornais no início do mês de fevereiro deste ano. Para citar apenas dois exemplos: “Vacinação de filhos contra a Covid divide ex-casais e briga chega até a justiça” (Estadão, 05/02/2022) e “Vacina contra a Covid para crianças polariza famílias” (Folha de São Paulo, 06/02/2022). Ora, os movimentos antivacinas não são novos. De tempos em tempos, ganham mais ou menos força, a depender das questões políticas, ou melhor, biopolíticas, envolvidas. Por exemplo, no Brasil a Revolta da Vacina em 1904, na cidade do Rio de Janeiro, é famosa. Diante de reformas urbanas e de programas de saneamento básico na cidade, o sanitarista Oswaldo Cruz levou a cabo uma campanha de vacinação obrigatória da população contra a varíola. Outras medidas nessa época contra a febre amarela e a peste bubônica também deixaram a população dividida, agitada e revoltada.

Fugindo um pouco do assunto, Moacyr Scliar no ano de 1992 lançou um romance saboroso contando esse período de nossa história intitulado “Sonhos Tropicais”. O livro ganhou o Prêmio Jabuti de melhor romance em 1993. Em 2001 surgiu uma versão cinematográfica do livro com o mesmo título. Voltando ao assunto: apesar das vacinas serem, historicamente, o meio mais eficaz para o combate e a erradicação de doenças infecciosas, sempre houve grupos contra a sua obrigatoriedade. Os motivos são muitos e não é aqui lugar de comentá-los. O que me interessa é a questão da vacinação ou não das crianças comentada nos jornais citados.

Segundo o DATAFOLHA, 76% dos pais são a favor da vacinação das crianças contra a Covid. Apesar da Organização Mundial da Saúde e da ANVISA declararem que a vacinação infantil contra a Covid é segura e eficaz, muito pais se dividem entre emoção e medo diante da possibilidade de imunizar seus filhos. Em muitos casos, esse medo acaba sendo transferido para as crianças, e também levam, no caso de pais separados, ao impasse judicial das reportagens. No caso da guarda compartilhada da criança, por lei, todas as decisões referentes à vida da criança devem ser tomadas em conjunto. Se uma mãe ou um pai for contrário à vacinação dos filhos, e não havendo a possibilidade de um consenso, a única saída é a disputa judicial.

Para o filósofo escocês Alasdair MacIntyre, o excesso na busca de soluções judiciais para fatos corriqueiros da vida, como vacinar ou não uma criança, revela uma das características da sociedade contemporânea. Revela nossa crescente incapacidade de atingir um consenso racional diante dos conflitos. Apelar para regras e procedimentos do sistema jurídico como instância de decisão de conflitos tornou-se corriqueiro, e muitas vezes necessário. Este papel pacificador do jurídico revela a crescente inexistência de princípios morais partilhados pela sociedade contemporânea, liberal e individualista. Nesta sociedade cada indivíduo é livre para escolher os valores que deseja adotar para sua vida, desde que não os imponha como valores universais da vida pública. A vida pública segue vinculada, fortemente, à economia de mercado, e qualquer vinculação além desta tende a gerar, quase sempre, um debate estéril e confuso. Assim, entendemos o porquê da necessidade de soluções judiciais o tempo todo. Soluções que nos ajudem em nossos conflitos sociais, públicos e familiares. Soluções que não nos exijam uma discussão mais profunda e demorada acerca de nossas compreensões partilhadas sobre a sociedade e seu funcionamento, a vida em toda a sua diversidade e a existência humana no mundo. Na jocosa afirmação de MacIntyre, “os advogados, não os filósofos, são o clero do liberalismo”.


Elton Vitoriano Ribeiro SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia, e reitor da FAJE

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